terça-feira, 2 de janeiro de 2018

Charlotte Gainsbourg / “Não tenho o talento do meu pai nem a beleza da minha mãe”



Charlotte Gainsbourg: “Não tenho o talento do meu pai nem a beleza da minha mãe”



Álex Vicente
28 DEZ 2017 - 18:00 COT


Desde pequena todos os seus passos foram comparados com questões genéticas. Filha de Jane Birkin e Serge Gainsbourg, semideuses da cultura francesa, a atriz e cantora lança um novo disco.



Olhá-la é observar as águas calmas de um lago sob o qual se pode antever grande agitação e conflito. A definição é de sua mãe, Jane Birkin, e é impossível de ser igualada em poesia e precisão. Charlotte Gainsbourg é uma torre que ameça desabar, uma silhueta de bailarina clássica com as quatro extremidades em greve, um ícone do chique vestida com camiseta de algodão e jeans gastos. Sorri com cuidado, mas não pode disfarçar a escuridão de seu ser, como um personagem das irmãs Brontë transplantado para o coração de Saint-Germain-des-Prés. O encontro é no bar de um luxuoso hotel parisiense, a apenas algumas quadras da casa onde cresceu. A residência mítica na Rue de Verneuil, onde morava seu pai, esse Zeus da melodia chamado Serge Gainsbourg, até sua morte em 1991, tornou-se um lugar de peregrinação para seus inúmeros fãs. A fachada está coberta de pinturas abundantes. A mais impressionante reproduz os rostos de seus progenitores em escala gigante, como se fosse a propaganda de um regime autoritário. Juntamente com eles, essa atriz e cantora de 46 anos forma o mais próximo a uma família real que essa nação orgulhosamente republicana pode ter.
Nesse canto da cidade, cheio de galerias de arte empoeiradas, lojas antediluvianas de filatelia e bares comandados por garçons inevitavelmente desagradáveis, Charlotte Gainsbourg se sente em casa. Mas esse não é mais seu lar. Após a morte de sua meia-irmã, a fotógrafa Kate Barry, que tirou sua própria vida se jogando da varanda de sua casa em 2013, Gainsbourg mudou-se para Nova York. "Passei seis meses na cama. Me senti culpada por ir embora, mas era a única maneira de sobreviver", explica com sua voz inimitável, sentada de costas para a clientela do bar, que finge à perfeição que não a reconheceu. A estratégia funcionou. Gainsbourg conseguiu se reinventar à luz do otimismo abençoado dos moradores locais, que diz que certamente faria seu pai vomitar. Percorreu Manhattan em sua bicicleta, passou horas cozinhando com seus três filhos – frutos de seu relacionamento, desde os 19 anos, com o ator e diretor Yvan Attal – e começou no esporte, uma atividade proibida em uma família onde "o obrigatório era ser poeta maldito e sofrer muito", como confessa entre risos. Dedicou o tempo restante para terminar um álbum que estava adiando por sete anos. Marcou a produção com um pop sombrio e letras obscuras, que escreveu em suas duas línguas maternas. E, depois de uma longa reflexão, decidiu intitulá-lo Rest (lançado pelo selo Because/Universal). Como o rest in peace que se deseja aos mortos em inglês. Como o imperativo francês que a exorta a não nos abandonar.











Charlotte (a menor) de férias na Normandia com sua meia-irmã, Kate, e seus pais, Serge Gainsbourg e Jane Birkin.
Charlotte (a menor) de férias na Normandia com sua meia-irmã, Kate, e seus pais, Serge Gainsbourg e Jane Birkin. 


Não é preciso ser bilíngue para entender que esse é um álbum sobre a morte. "Mas também sobre a vida, porque ainda estou aqui. É um álbum sobre a dor que a morte provoca e a explosão de vida que vem depois", resume Gainsbourg. "Quando cheguei a Nova York, consegui recuperar meu apetite pela vida. Ainda estava obcecada com a morte de minha irmã, mas havia uma distância que a tornava menos real e concreta". Apesar de tudo, não gosta de ver seu álbum como uma terapia. "É um projeto artístico e não um processo de cura. Por outro lado, quando terminei o álbum, também não me senti aliviada. Ainda estou em estado de incompreensão em relação à morte dela. Agora já não passo mais o dia chorando, mas ainda não digeri", confessa. Feridas recentes costumam reabrir outras mais profundas. A lembrança de seu corpo sobre o cadáver do pai, uma máscara de cera com músculos flácidos, veio à mente de Gainsbourg. Entendeu que também não tinha essa perda, já distante, tão assimilada quanto todos acreditavam. "Nunca falo sobre isso, porque me sinto ridícula. Parece um pouco estúpido quando você articula com palavras, mas meu pai nunca me abandonou. Não sou espiritual nem tenho nenhuma religião, mas tenho uma conversa constante com ele", diz. "Sempre tive a sensação de ter um anjo da guarda que me protegia. Eu digo que é ridículo porque, no fundo, eu sei que não é verdade. Mas é algo que funcionou bem para mim".





Em sua família, conta, “era obrigatório ser poeta maldito e sofrer muito”

O álbum também serviu para resolver pendências com ela mesma. Desde que se entende por gente, Gainsbourg esteve à sombra da fama cegante de seus pais, cujo casamento, desfeito em 1980, é quase que o código fonte da modernidade francesa. Ela sempre viveu com a sensação desagradável de não cumprir seus padrões genéticos. Seus dois álbuns anteriores –ambos cantados em inglês para evitar comparações com o Gainsbourg sênior; 5:55, com a participação da Air e sua música eletrônica, e IRM, em parceria com o californiano Beck, fã incondicional de seu pai– pareciam ocultar deliberadamente que ela era filha de seus pais. Com Rest parece aceitar, finalmente, sua condição como filha. "É verdade. Agora eu levo melhor", responde sucintamente. Até mesmo decidiu escrever suas próprias letras pela primeira vez, depois de cogitar pedi-las a seu admirado Michel Houellebecq. "No final, não me atrevi, mas adoro suas letras. Eu gosto do seu lado cruel e duro, sua sinceridade assassina. Existe uma perversão nele que me interessa", diz. Em vez disso, em seu plantel se destaca a presença de Paul McCartney, que lhe deu uma canção (Songbird in a Cage) transformada em eletrônica com a ajuda do produtor Sebastian, conhecido por suas colaborações com Daft Punk e Frank Ocean.
Seus versos descrevem um retrato severo de quem segura a caneta. Por exemplo, em I’m a Lie (Eu sou uma mentira), Charlotte se define como hipócrita e tola, com a autoestima sempre no chão: "Incerteza cruel, fraqueza intelectual. / Sempre tão reservada, sempre tímida. / O meu desconforto me machuca, e ainda sonhei com excessos e fantasias indecentes / apesar da minha aparência recatada, discreta e decorosa". Diz que não é má consigo mesma, simplesmente realista. "Essa é a imagem que outros veem. Quando meus filhos me imitam, eles sempre adotam minha vozinha horrível. Odeio me ver gesticulando nos meus filmes, em que também não acho que atue muito bem, exceto em momentos limitados. Nada que sai de mim eu gosto, mas entendi que a insegurança é parte de quem eu sou. Agora eu até reivindico isso", diz com placidez quase total. "Meu problema foi que sofri comparações difíceis de todas as partes. Sou apenas objetiva: sei que tenho algo dos meus pais, mas sem alcançar o mesmo nível. Não tenho nem o talento de meu pai nem a beleza da minha mãe. Quando me dizem que eu também sou bonita, respondo que não. Desculpa, mas não posso concordar."











A atriz e cantora Charlotte Gainsbourg durante uma apresentação em Londres em 2010.
A atriz e cantora Charlotte Gainsbourg durante uma apresentação em Londres em 2010. 


Seus complexos se pronunciam, justamente, no físico. Talvez porque, em sua casa, a beleza interior era apenas uma mentira à qual os feios do mundo recorriam para se consolar. "Fui educada com a ideia de que a beleza física tinha grande importância. É algo que eu censuro meus pais. Era a única coisa que contava, especialmente para as mulheres. Talvez houvesse algo misógino nisso: a primeira coisa era ser bonita, e depois vinha o resto", lembra. Aos 12 anos, pediu a seus pais que a colocassem em um internato. "Precisava de um quadro mais sólido. Minha casa era muito caótica", lembra. Com o tempo, entendeu que nem tudo estava mal. Seu pai lhe ensinou o que era "a exigência, a ponto de ser um pouco maníaco", enquanto sua mãe, filha de um militar britânico, que popularizou a nudez na França antes de consolidar-se como uma das mais fascinantes intérpretes de sua geração, acabou lhe passando sua modéstia. A frase que mais vezes lhe repetia quando criança era: "Não acredite". Especialmente depois de se tornar uma adorada jovem estrela graças ao seu primeiro grande sucesso, L'effrontée, de Claude Miller, em 1985. "Hoje ainda é a característica que mais me irrita nos outros: a petulância daqueles que alcançam o sucesso. Não acho um traço bonito de carácter", afirma Gainsbourg.





Seu pai lhe ensinou o que era “a exigência, até chegar a extremos um poco maníacos”

Durante a juventude, a jovem Charlotte procurou a si mesma sem se encontrar. Aos 13 anos, depois de retornar de seu internato, se apaixonou pela religião de seus antepassados paternos, os ashkenazim russos que emigraram para a França no início do século passado. Decidiu então se tornar "uma judia secreta". "Ia sozinha a uma sinagoga liberal de Paris e comemorava o Yom Kippur comigo mesma. Comprei um livro de oração com uma transcrição fonética para poder orar em hebraico, apesar de não entender nada do que estava dizendo", diz, revirando os olhos. "Fiquei ofendida quando me lembraram que nunca seria judia porque minha mãe não era. Grande parte da minha família era profundamente antirreligiosa, mas eu precisava fazer parte de algo", lembra. Esse surto de religiosidade coincidiu com a morte de sua avó, um dos poucos sobreviventes de uma família onde havia muitos mortos. "Na minha casa se conversava muito sobre a guerra, mas suas histórias eram felizes. Demorou muito tempo para entender que, se eram tão felizes, era só porque eram os únicos que conseguiram se manter vivos", diz. Por outro lado, seu pai também tinha histórias trágicas insuspeitas. Seu verdadeiro nome era Lucien Ginsburg, e escondeu, quase até o fim de sua vida, que um diretor de orquestra salvou sua vida ao escondê-lo na França profunda para escapar do cerco dos nazistas.
Para seu pai, Charlotte era a menina dos seus olhos. Para alguns, seu relacionamento era inclusive limítrofe com a paixão. Com seu senso de humor cáustico, que hoje lhe custaria algumas condenações judicias, Gainsbourg escreveu Lemon Incest, em que aludia com ambiguidade ao amor impossível entre um pai e uma filha. A França dos anos oitenta estremeceu com a provocação de Gainsbarre, o último personagem do compositor: uma espécie de bronco que percorria os palcos de televisão queimando notas de 500 francos e propondo sexo ao vivo a uma incrédula Whitney Houston. Sua filha entende a reação, mas a considera desproporcional. "Nunca houve qualquer dúvida sobre o que a letra dessa música diz. Meu pai fala de um amor não consumado. Parece uma pena que você não possa falar sobre certos problemas, mesmo quando eles são sérios. Penso que hoje seria impossível gravar uma música assim", lamenta. Vivemos em um tempo mais puritano do que há três décadas? "Sim, mais puritano e mais asséptico. Hoje tudo deve ser bem pensado e politicamente correto", reclama, com uma careta de tédio. Mas, em seguida, acrescenta uma frase inesperada para a filha de dois símbolos da revolução sexual na França: "Ao mesmo tempo, desse clima surgiu a possibilidade de as mulheres se expressarem e dizer que há coisas que não são normais. Se os escândalos sexuais dos últimos meses tivessem sido descobertos há 30 anos, teríamos levado tão a sério quanto agora?”.











Charlotte no filme que a transformou em uma estrela adolescente, ‘L’effrontée’ (1985).
Charlotte no filme que a transformou em uma estrela adolescente, ‘L’effrontée’ (1985). 


Gainsbourg se diz preocupada com a extensão dos abusos e assédios na indústria para a qual trabalha, mas diz que não sofreu em primeira pessoa. "Eu não vivi, apesar de ter trabalhado com Harvey Weinstein e Brett Ratner. Sei que Lars von Trier também foi acusado. Só posso dizer que ele nunca fez nada comigo. Nunca", diz sobre o diretor dinamarquês, a quem agradece por ter lhe dado os papéis principais de Anticristo, Melancolia e Ninfomaníaca. No entanto, depois de suas respectivas filmagens, não hesitou em salientar o quão difícil é enfrentar Von Trier. "A cena final de ‘Melancolia’ foi insuportável. Lars me torturou, mas fui eu quem pedi". Hoje ela aponta esses papéis como sua melhor experiência em uma carreira que também a levou a trabalhar com Todd Haynes, James Ivory, os irmãos Taviani, Patrice Chéreau, Michel Gondry, Alejandro González Iñárritu e Roland Emmerich. "Sinto empatia em relação a essas mulheres, é um assunto grave, mesmo que eu não tenha tido essa experiência". Afirma, apesar de tudo, que a sedução não desaparecerá na relação que um cineasta mantém com seus intérpretes. Também não considera intrinsecamente ruim. "Um diretor que escolhe você para um papel sente um desejo. E todo intérprete, seja homem ou mulher, usa todos os seus encantos para entrar nesse jogo. O que é inaceitável e o que é terrível é que se torne uma luta pelo poder e uma vontade de submissão. Podemos trabalhar em condições que não sejam sujas", conclui, antes de levar seu fundo do mar, inesperadamente agitado, para outro lugar.

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