sexta-feira, 30 de junho de 2017

Brasigois Felício / Medíocres e canalhas


Medíocres e canalhas


Brasigois Felício
28/02/2008 ÀS 02:44 PM

"Apenas por afrontamento insisto na maldade de escrever", confessou Ana Cristina César. Quanto a mim, apenas por lealdade ao sentido daquilo para que fui nascido, insisto na vanidade de escrever. Mesmo sabendo da impotência e inutilidade de tal fazer, o que faz dele um ato falho em si mesmo. Bertolt Brecht o disse de outro modo: "Eu sei que tem gente com sede e fome, mas mesmo assim eu como e bebo". Paul Valéry escreveu, em seu diário de bardo: Quem diz obra diz também sacrifício. A grande questão é decidir aquilo que vamos sacrificar. É preciso saber quem será comido".
       
Até porque, sendo o mundo um cruel e sangrento palco de eterna devoração (uns animais a matar e a comer uns aos outros, para se manterem vivos, assim vivendo em permanente estado de necessidade) a questão a se colocar, quanto ao"sacro ofício", a que têm de submeter-se o poeta e o artista, é: vale a pena sacrificar algo em si, em função da hipotética satisfação de criaturas de alma pequena? Qual ato de amor à verdade pode vingar, ou tornar-se visível, em uma sociedade de mortos vivos, que vive a consagrar e a ministrar a mentira e a hipocrisia em doses cavalares, para um sempre sedento e insaciável mercado?   Mesmo sabendo ser a sua entrega à solidão de seu ofício um sacrifício inútil, o verdadeiro artista não desiste, nem permite que o corrompam com promessas de falsos paraísos, a acenar com vanidades que apelam à satisfação dos sentidos. Insiste em manter-se íntegro e leal à dignidade inerente ao seu ofício, como o fez Clarice Lispector, que nunca se quis escritora profissional, para não ter que entregar a liberdade de ser quem era, naquilo que escrevia.  

Em solidão criadora de quem era em si mesma uma atmosfera, a revelar não uma pessoa prosaica, mas uma solidão inquieta, no grande e estranho mundo das palavras em estado de liberdade, em sosinhês de ser ela mesma, não fazia retoques de maquiagem para agradar ou "fazer bonito" à parvoíce de medalhões ululantes. E nestas obstinada recusa em ser repasto no banquete dos vampiros do Deus Mercado, fazia coro às palavras de Albert Camus: "Então, se a lucidez é mentira e hipocrisia, por que não seria a loucura verdade e pureza?"  

É fácil perceber: um mundo que perdeu a sua alma possibilita, mais do que nunca, o triunfo das nulidades. Assim, medíocres & canalhas passaram a habitar (e a prejudicar abundantemente) o palco de vaidades da literatura e das artes, com plagiadores e diluidores de plantão a ganhar prêmios até mesmo daqueles a quem plagiam. Triste é saber que a literatura é usada como trampolim de alpinismo social, escada fácil e fútil para a ascensão de retumbantes mediocridades!  

Basta publicar um opúsculo contendo versinhos de sentimentalismo barato para ganhar o pomposo nome de poeta ou poetisa! Com alegre leviandade, fazendo uso escancarado do tráfico de influências, logo estarão batendo à porta das academias de letras - que abundam nas capitais e províncias, proliferando como praga. Afinal, já dizia aquele bardo das virgens poucas, que já foram loucas: "A história da literatura é a história das amizades!" Sendo ele próprio o insuspeito exemplo do que afirma.  

Bafejados por fortuna, e/ou prestígio social ou político, que saibam escrever uma frase afirmativa simples, têm acesso garantido. Serem chamados de "acadêmicos" é glória de que se ufanam, vanidade que enche o peito de falsa importância. A praga da mediocridade ululante, a retumbar com estrondo, como um caminhão basculante, sem nenhum conteúdo, manifesta-se também como chusma de piolhos da subliteratura, a pedir prefácios, encômios & espaços; mal põem as manguinhas de fora, já querem ser tratados como gênios. Pior é que ainda se dão à pachorra ou ao direito de serem arrogantes.  

Como hordas, solertes e rapaces, multiplicam-se como praga as legiões de mediocridades, anônimas ou triunfantes, a pulular nos salões, a despejar suas sandices subsidiadas por leis de incentivo que deveriam dar-se ao trabalho de selecionar, pelo critério da qualidade, as abobrinhas que patrocinam. O quadro se torna dantesco quando as mediocridades ululantes triunfam, tendo em vista as facilidades que o tempo oferece às falsetas, e ainda por cima se revelam solertes e rapazes canalhas, capazes de empulhar e enganar a muitos, durante muito tempo. A esta tipo infernal de mediocridade triunfante aplica-se o brocardo: "Há pessoas que não têm nenhuma importância, mas têm amigos nas redações".   

Como nunca ficou tão fácil publicar, publica-se em cascatas, produzindo-se o barulho de trombadas de basculantes. E sabe-se, pela experiência: quanto mais vazio um caminhão basculante, mais barulhento. Em face do acanalhamento tendendo a tornar-se geral e irrestrito, a invadir todas as áreas e segmentos da população, mormente entre os políticos, não é de se estranhar que o neocinismo oportunista e pernicioso ganhe, a cada dia, mais e mais adeptos, também no setor cultural e artístico. Tão descaradas e ousadas são as nulidades, que emplacam obrinhas risíveis, de tão patéticas, como leitura obrigatória em vestibulares - outras, como autoridades da cultura, fazem dos concursos literários ação entre amigos, com prêmios sendo amavelmente trocados entre si.  Daí que Clarice Lispector, Lúcio Cardoso (e outros, da sua dignidade e estirpe) tiveram sorte, em terem saído mais cedo deste mundo em que triunfa o absurdo. Se àqueles tempos, em que
ainda haviam legítimos talentos, eram tristes, é de se imaginar o desespero em que viveriam hoje!



quinta-feira, 29 de junho de 2017

Brasigois Felício / Grandeza e miséria dos jornais


Grandeza e miséria dos jornais


Brasigois Felício
20/10/2008 ÀS 03:44 PM

Há no romance Ilusões perdidas, de Balzac, situações que parecem ter sido inspiradas em nossa época. O jornalismo é a porta pela qual o personagem de Ilusões perdidas entra para o hospital das letras, em busca de glória e dinheiro. Entre nós, não faltou exemplos de literatos de nomeada que exerceram atividade jornalística, seja no batente duro das redações, ou na moleza de serem cronistas do cotidiano - a ponto de terem cunhado o bordão: "O jornalismo é a lata de lixo do literato frustrado".


Sejamos justos: nem todo jornal é lata de lixo, e nem todo literato que nele trabalhou ou trabalha é frustrado. Muitos se tornaram celebridades, a começar de Machado de Assis.

Mas falo aqui não do jornalismo literário, onde não estão presentes as injunções e pressões "alienígenas", vindas de fontes dignas, digo, detentoras do crédito e do vil metal, que atingem o noticiário político. Assim como nos tempos de Balzac, pior talvez em nossos tempos neocínicos, onde há formas de pressão inexistentes na Europa romântica. Com pequenas mudanças, vemos que que as eras se repetem, não só nas modas, como também nos costumes. "Essa gente bebe copázios em maior número do que os livros que vende".
Não faltam no livro alusões à intemperança etílica dos escritores e artistas em geral. O que reverbera a sátira de Crime e Castigo, de Dostoiévsky, à irresponsabilidade crônica do poetariado de todos os tempos: um bando de bardos (desempregados crônicos dos lumpen das letras) entra em um bar, come, bebe, toca piano com os pés e sai sem pagar, dando-se ao luxo de ameaçar o bodegueiro de denunciá-lo na gazeta  periférica em que escrevem suas lamúrias & louvaminhas.
Mas isto se deu no tempo em que escrever em jornais conferia algum poder e prestígio, visto no halo de santidade que também ostentavam os poetas, segundo Baudelaire, ao anunciar, com as avenidas da modernidade, a decadência do prestígio que conferia o ter alma e espírito. Como tudo o que é sólido desmancha no ar, o halo do poetariado caiu na lama, e foi despedaçado pelos rios de aço do tráfego.
"E então, meus filhos, disse Luciano, ostentando um ar de superioridade: vocês verão que o pequeno farsante pode vir a ser um grande político!". Quantos pequenos ou grandes farsantes não conhecemos, que - entra governo e sai governo - transformam-se em notáveis eminências da vida pública, gatos de palácio, cevados na gamela das benesses palacianas!
Sobre a inveja e a maledicência, inerentes à indigência mental e espiritual do animal humanóide, mas que abunda e prejudica mormente nos meios artísticos e literários: "A inveja, que persegue todas as obras belas como o verme aos bons frutos, tentou morder este livro. Para conseguir encontrar-lhe defeitos, a crítica foi obrigada a inventar teorias como o propósito de distinguir duas literaturas - a que se entrega às idéias e a que recorre às imagens". Motivo pelo qual em reunião de artista plástico e literato quem sai primeiro fica no prejuízo, passando a ser a bola da vez - alvo da malhação ilimitada.


Daí os costumes registrarem o uso de saírem de as rodas desmancharem-se de uma só vez, em debandada geral.




quarta-feira, 28 de junho de 2017

Brasigois Felício / Putas da minha vida




Putas da minha vida

Por Brasigois Felício
Em 20/03/2008 ÀS 09:41 AM
   
Nunca me deixei impressionar pelo fato de que a zona boêmia, tanto ou mais que o engenho de açúcar, (em seu moer e coar como canas colônias de vidas escravas) é uma máquina de viciar e gastar gente. Por muito tempo andei querendo encontrar quem eu sou nos labirintos da perdição. É comum ver-se, nos puteiros, mulheres velhas, decrépitas, com uma pele só rugas, de pouco mais de quarenta anos. Obrigadas, pelas cafetinas, a beber a noite inteira, enquanto copulam até vinte vezes por dia, com a sucessão de maus tratos, as surras que recebem do cafetão e dos meganhas, as brigas, a insegurança, o medo e a permanente violência, e pelo fato de estarem sujeitas a contrair todos tipos de doenças venéreas, com poucos anos de "profissão", viram mulambos humanos. 

Não por outro motivo que os coronéis d´antanho, assim como os oligarcas contemporãneos dão preferência às mocinhas, recém-chegadas no ofício. É que cedo perderão o viço da pele, o brilho dos olhos, o brilho da vida, que em tais criaturas se esvai com velocidade espantosa. Nos bordéis de antigamente, (que hoje os há mais sofisticados e, com o aumento da concorrência, hoje é difícil saber quem está no ofício só por gostar do meretrício, ou quem nele mergulhou de cabeça, pra valer), em poucos anos a mocinha dadeira virava velha rameira, tão sôfrega e selvagemente lhe era sugados o viço e a seiva da juventude.


Conheci uma prostituta tão velha e decrépita que parecia a chaga viva da humana ruína, exposta ao escárnio do público. Tinha um corpo e um rosto destruídos, apesar de seus pouco mais de quarenta anos. Era impossível determinar, com a ponta de uma agulha, um lugar de seu rosto onde não houvessem rugas. Era, em verdade, um inventário de rugas, como rios do desespero, em seu rosto destroçado.

Maracujá de gaveta perdia para ela. A velha noviça, feia, de uma fealdade inescondível e absoluta, era a prova, em carne viva, de que não existe chinelo sem dono, e nem sandália que seja impedida de ir a salão de festa, pois arranjava fregueses, entre os iniciantes, os tímidos, os paupérrimos e os que eram, como ela, extraordinariamente horrendos e despojados de todo e qualquer atrativo físico. Atendia pelo codinome de Dolores, e foi com muita dor que, acometida de câncer, veio a falecer no puteiro, depois de pungentes e doloridos anos de sofrimento (não tinha ninguém de seu, que pudesse tirá-la da "casa da sordidez"). 


Morreu ali, à míngua medicina (que eu nada a ajudaria), mas não lhe faltou o amor e o companheirismo das outras "mulheres de vida alegre". Apodreceu, ao pé do leito mortuário de seu imenso desamparo. Só, e abandonada, como uma fruta que, cansada de madurar para nada, apodreceu, encroou, e virou fóssil vegetal. Morreu como viveu - sem ter um cã a quem pudesse acarinhar ou de quem algum afago recebesse. Viveu e padeceu no cemitério de gritos do câncer, e no viver foi como uma fruta a apodrecer, sem que ninguém sequer a contemplasse, na árvore ou na fruteira, com olhos de família, ou desejo de amante. 

Foram anos seguidos de lenta e dolorosa agonia. Dolores morria devagar, embora fosse desejo e (não lhe faltou a solidariedade das companheiras), que não a atiraram "no olho da rua", como chegou a ser sugerido, nem por piedade de eutanásia apressaram seu desenlace. sua despedida das solidões da carne foi lenta e dolorosa. Pedia, aos gritos, que a morte lhe chegasse como uma graça e dádiva terminal de quem viveu sem saber, ao menos em breves instantes, o que é ser amado e feliz, em sua existência vivida sob o signo de tânatos, ainda que por vocação de ofício tenha entregado seus dias aos gritos e sussurros do sexo pago.

A morte instalara suas teias sobre as vísceras de Dolores, mas Dolores não se decidia a morrer de fato e de direito. Morria em vida - e, lentamente, como uma fruta que amadurece, e a mão de Deus ou dos homens não tem a piedade de estender, para colher seu gesto inaugural de ternura - seu terminal desejo de entrega à juventude da vida, começou a desidratar e a reverdecer, como sucede às pessoas ficam encroadas, como frutas mal amadas, depois que de suas vidas e almas se extraiu todo suco e toda essência que nelas pudessem ter existido um dia.

De seu corpo, que apodrecia em vida, exposto à curiosidade pública, como se fosse de uma espécie muito rara, exalava um fedor adocicado, como o que exalam as fartas mangas abandonadas, que viram lama ao pé das fruteiras. Seus gemidos se misturavam com os gritos e sussurros das putas que gozavam (ou fingiam gozar), pois é sabido que as profissionais do amor só gozam e só aceitam ser beijadas na boca pelos "queridos" - e assim a vida se mostrava trágica e desesperada como é: quem ali entrasse para transar o sexo pago, ou quem apenas se entregava ao convívio seresteiro com a boêmia, e ficasse na sala, a ouvir e a cantarolas músicas de Nelson Gonçalves e Carlos Gardel, ouvindo gemidos vindos do quarto, não podia identificar se eram gemidos da dor de morrer em vida, ou se eram produzidos pela máquina de esfolar e fazer gozar pessoas mortalmente vivas, e tristes e solitárias. 

Toda vez que ouço, nas vozes embriagadas, e violões enluarados, "A volta do boêmio", na voz de Nelson Gonçalves, dardejam nos meus ouvidos, como sinos da agonia, os gemidos de Dolores, a prostituta mais velha, mais feia, e a mais sofrida já existida ou por existir, nas "casas de luz vermelha" da Campininha das Flores: "Boemia/ aqui me tens de regresso/ e suplicando te peço/ a minha nova inscrição/. Voltei/ pra rever os amigos que um dia/ eu deixei a chorar de alegria/ me acompanha o meu violão...". Então entendo porque as putas e os boêmios voltam sempre, a procurar, sedentos, os sítios do perigo e da perdição . Agora entendo as putas e os criminosos, que mesmo depois de haverem escapado ao perigo e à indignidade dos crimes que fizeram, quando a adrenalina retoma os níveis normais, escravos de forças magnéticas e poderosas, sempre voltam ao local do crime.

Um poderoso magnetismo, ou quem sabe o fascínio pela queda, e a sede de mergulhar na vertigem, fez que retornassem ao puteiro mulheres que encontraram companheiros, filhos, e o pacato e burguês "lar doce lar", que abandonaram, em dia de luciférica lucidez, reencontrando a perdição de que jamais se libertaram. E só quando amei tive olhos e ouvidos capazes de ouvir e entender estrelas. E só quando, na solidão do outro, de meu abissal desamparo me libertei, pude entender o que dizia o boêmio, quando cantava sua alegria vital, por haver de novo encontrado o caminho da perdição: "Fiz de tudo o que eu podia/ e de tudo o que eu fazia/ não me arrependo/ e te juro que faria/ tudo de novo/".

Dolores, seus gemidos e ais, e suas dores demais. Havia a pedra da solidão, em seu caminho. E a pedra de Sísifo, que ela carregou até o último gemido- suspiro, foi a de ter sido estrangeira para os outros, e para si mesma, em seu quarto, na casa em que morria, em seu pais, e no triste planeta terráqueo. Dolores nunca mais esqueceria do acontecimento da dor, na vida de suas retinas tão fatigadas. "O que é pior? Uma puta que vive de se entregar, ou uma puta que nunca se entrega?".

P.S. De putas, deputados e outras lambanças

Fêmeas fatais têm sido o abismo de celebridades políticas. Quanto mais estonteantes as beldades, mais perigos trazem em potencial. O rigor do método doidivano tem encontrado a perdição cartesiana em combates de coxas e lascívias de bocas - inconfessáveis ao público externo que paga a conta do banquete em que mulheres para 400 talheres são convocadas aos doze trabalhos de Eros. 

De um modo geral, sempre foi assim: a começar por Afrodite , passando por Cleópatra, guerreiros deram seus reinos (ou seus cavalos) por uma noite com suas belas putas. Poetas nefelibatas entram em delírios de loucura pura. Bill Clinton fuma o charuto cubano da luxúria americana com uma estagiária (Mônica amorosa e dadivosa) e quase perde o comando da pátria de Tio Sam.

No Brasil, um Itamar deslumbrado empunha o cetro público de sua lascívia senil, ao ver os pelos púbicos da vedete, na festa da carne em que todos os pudores se perdem. Outros farão filhos por fora - que vão estudar no estrangeiro, para não arranjarem pampeiro no chão brasileiro. Na presidência do congresso dos agachados o varão Renan Galheiros (fazendeiro do ar, de gado simbólico, para mutretas de lesa-fisco) moverá céus e terra para não faltarem abundantes alimentos à amante nutriz. Não dispensará os serviços de um gerente de empreiteira, para não faltar mamadeira à infante que pôs no mundo fora do seio da sagrada família.

Enquanto caem as estrelas dos pais da pátria, tidos e havidos como sendo acima de qualquer suspeita, resplandece o brilho das dadivosas, que desfilam triunfalmente por todas as mídias. Escrevem livros, lançam-se na vida pública (como esta já não fosse a sua) - dão consultorias sobre combates de coxas, e tornam-se, da noite para o dia, celebridades milionárias, a quem se trata com venerando respeito. As mais proletárias da mais antiga das profissões limitam-se a lançar griffes espúrias, em alusão irônica à perseguição petista à Daslu. Sem contar que Goiás comparece como líder no ranking dos Estados exportadores de putas. Daí reproduzir a pergunta feitas linhas acima, no conto-verdade inserido em meu livro Memorial do medo: o que é pior, a puta que se entrega, ou a puta que não se entrega nunca?

Se considerarmos que muitas santas mães de família são prostitutas de seus maridos, uma pergunta se alevanta: uma santa mulher pode ser uma puta putana, ao costurar para dentro? Outra insiste em falar: por que o ser mulher de vida alegre e airada há de ser uma desfeita, se dá aos homens o amor faltante em seu mundo? Por isto há de se preferir a vida alegre de alguém que assuma o respiro da vida, do que a solidão compadecida de si, da senhora "acima de qualquer suspeita", que sai com o senador, por um punhado de dólares, e uma gorda pensão alimentícia - a outra e a mesma que, no altar de sua hipocrisia, reza as trezentos e cinqüenta Ave-Marias de suas sublimes vilanias.




terça-feira, 27 de junho de 2017

Brasigois Felício / Tempo e memória


Tempo e memória

Brasigois Felício
16/02/2009 ÀS 09:38 PM

“Porque o tempo é uma invenção da morte/ não o conhece a vida/ a verdadeira/ em que basta um minuto de poesia/ para nos dar a vida inteira”. (Mário Quintana). O tempo é o maior dos mistérios desta vida. É Cronos a comer os seus filhos. Dele muito se fala sem saber o que de fato é. Conceitualmente, tempo é a medida do movimento no espaço. Dele raramente se fala como sendo filho ou pai da memória. Os Upanixades, Helena Blavatsky, Bérgson, Hegel, Marcel Proust, memorialistas como Pedro Nava, cientistas, filósofos. O tempo é a matéria dos poetas. E não só o tempo da vida presente  – nunca se parou de falar sobre o tempo e a natureza da memória. E não se falou tudo. 
O que fez Marcel Proust, ao concluir sua busca do tempo perdido? Colocar mais tempo na mente. Na dele e na caraminhola dos que leem os cartapácios de sua catedral de palavras. Tanto assim que morreu de overdose, ou de tanto não transar com Albertine, que talvez tenha sido ele próprio. O filme “O Curioso Caso de Benjamin Button” levanta reflexões sobre a inexorabilidade do tempo que passa, a consumir nossas vidas. O mais difícil, nos trabalhos e nos dias (evoé, Hesíodo!), é conquistar o presente que se tem. No mais das vezes, por pura inconsciência e mecanicidade de nossa existência, o presente não é desfrutado nem vivido pela pessoa que o tem.
Pois estamos sempre no futuro ou no passado, a imaginar quimeras, projetar situações ideais de vida, em nossa insatisfação constante. Saber gastar o tempo que se tem é uma forma sábia de não ser perdulário com um valor que, uma vez desperdiçado, não pode ser recuperado. Gastar o tempo com sabedoria é ganhá-lo, impedir que se perca inutilmente. O caminho sábio é preenchê-lo com o ócio criativo. O mitólogo Viktor D. Salis enfatiza: “gastar tempo não gera lucro, mas é a única forma de podermos instalar uma busca criadora em nós e nos outros, em que é possível a criação e a reconstrução”.    
Helena Blavatsky, no capítulo Cosmogênese, de sua monumental “A Doutrina Secreta”, assim leu nas Estâncias de Dzian, sobre a noite do universo: “O Pai Eterno envolto em suas roupas sempre invisíveis, repousou mais uma vez durante sete eternidades. Não existia o tempo, que dormia no seio infinito da duração. Não existiam seres universais, porque não existiam seres celestiais para contê-la”. Desçamos, porém, ao nosso planeta azul devastado pelo Homo Sapiens – fiquemos na dimensão da realidade onde o tempo pode ser percebido.
Só há tempo onde há espaço e movimento. Mas há o tempo psicológico que se manifesta na mente, como pensamentos, sensações, emoções como medo, ansiedade, expectativa, irritação.  Assim, o tempo pode ser dilatado ou abreviado, sendo a situação em que vivemos agradável ou desagradável. Aumenta ou diminui a depender do modo como é sentido. Em uma situação agradável e prazerosa, o tempo passa sem ser percebido. Horas parecem ter sido minutos. Mas em situações de estresse e sofrimento, dá-se o contrário: minutos são horas, horas parecem ter sido meses ou anos.
Ho Chi Min, líder revolucionário do Vietnã do Norte, foi aprisionado durante quase vinte anos. Um repórter perguntou como sentiu o tempo estando prisioneiro, e ele respondeu: “Quando se está na prisão o tempo é sempre longo”. Outros, vítimas do matrimônio monogâmico compulsivo, podem dizer: “Quando se está casado o tempo é sempre longo”.

A qualidade do tempo pode ser controlada, se nos mantivermos presentes quando coisas agradáveis ou desagradáveis nos acontecem. A quantidade de energia psíquica muda, a depender do modo como reagimos perante os fatos da vida. G. Gurdjieff. psicólogo russo, assinala: “Tente controlar sua reação ante alguma coisa ou pessoa que o irrita. Se quiser, conseguirá”.
O tempo da pessoa que, em uma pessoa, em uma fila de banco, põe-se a meditar, em serenidade mental, é diferente daquele que soterra e exaspera a mente estressada e irritada. Todos já tivemos experiências comprovadoras disto. Gestos ou falas de irritação contra a demora no andamento na fila, ou críticas ao desempenho dos caixas, por exemplo, são contagiosos, colocam as pessoas à volta na mesma disposição mental.
O tempo então torna-se mais “demoroso” e aflitivo, pois foi contaminado pelo crescimento da energia emocional de irritação. Esta se reproduz como onda, atinge pessoas sem que elas percebam – então, por puro automatismo, se põem a reclamar e a xingar, do mesmo modo que o irritador iniciador da contenda.

Vemos, assim, que, além do tempo cronológico, contido em cronos, ou no coração dos relógios, existe um tempo sobre o qual temos pouco controle: o tempo psicológico, que funciona com base em energia mental. A saída, em situações em que podemos ser arrastados pela energia mental coletiva de irritação e raiva, é nos manter tranqüilos, pensando em algo agradável, visualizando paisagens belas, ou mesmo apenas observando, sem julgar, o turbilhão dos pensamentos compulsivos. Assim esvaziamos a sua energia, e logo estamos serenos. Assim como a irritação é contagiosa, também o é a serenidade – o estressado estressante , em face de um comportamento gentil e amável, pode ficar constrangido e se dar conta de seu descontrole.

Conceder ou se permitir intervalos na falação mecânica e compulsiva também possibilita economizar energia psíquica, abrindo clareiras no turbilhão mental, de modo a desfrutarmos de paz e serenidade, em momentos em que isto parece difícil ou impossível. Nada é mais irritante do que uma falação incessante. Pois é sabido pelos que exercitam tal poder: o silêncio, assim como o tempo, pode ser qualificado. Fere mais do que todos os gritos, o silêncio ou o não-dito entre casais conflituosos, em permanente guerra conjugal. 
A qualidade do tempo no qual decorre nossa existência depende de circunstâncias, das pessoas que nos cercam, mas não só delas. Depende fundamentalmente de nós mesmos, uma vez que podemos não ser escravos das pessoas, reagindo como elas querem que o façamos. P.D. Ouspensky, físico russo, seguidor de Gurdjieff, explica: a energia das pedras de uma igreja não é a mesma que vibra nas pedras de uma prisão, ou a que existe nas paredes de um prostíbulo. Um homem que vai de manhã para o seu trabalho, está a gastar muito menos energia do que outro que brigou com o vizinho e vai à Delegacia denunciá-lo. 
Assim, convenhamos: difere em qualidade o silêncio a mente de uma pessoa que meditar, em oração pelo bem da humanidade, e a do criminoso ocasional ou contumaz, que está a planejar um assassinato. É um silêncio amoroso e atento, e a sabedoria que alcança vem das viagens que faz no desconhecido. O silêncio da mente meditativa vem do olhar profundo da pessoa que se faz presente no que faz e onde está – não é o silêncio turbulento de quem se deixa estagnar no pântano enganoso da memória.



domingo, 25 de junho de 2017

Brasigois Felício / Clarice Lispector / Clariceando o mistério


Clariceando o mistério

Brasigois Felício
25/07/2010 ÀS 09:59 AM

Tão estranha como foi, e estranho o olhar com que via os mistérios do mundo, que parece não ter existido, a não ser pelos estranhos personagens que inventou ou viu, nas praças e ruas de cidades do Brasil e do estrangeiro, em epifanias brotadas de uma sensibilidade antenada com o inesperado. Pois Clarice não interpelava o inesperado, aceitando-o, não como um estrangeiro atrevido, mas como um visitante familiar a si própria, e a todo e qualquer vivente desta nave planetária que habitamos. No dizer de Manoel de Barros sobre si próprio, pode-se intuir que Clarice “carregava seus primórdios num andor, e vivia a abrir descortinos para o arcano”.
Dizem que Clarice Lispector, a estranha, nascida Haia Lispector (Chechelnyk, 10 de dezembro de 1920 — Rio de Janeiro, 9 de dezembro de 1977) foi uma escritora brasileira, nascida na Ucrânia. Autora de linha introspectiva, buscava exprimir através de seus textos, as agruras e antinomias do ser. Suas obras caracterizam-se pela exacerbação do momento interior e intensa ruptura com o enredo factual, a ponto de a própria subjetividade entrar  em crise.
De origem judaica, terceira filha de Pinkouss e de Mania Lispector. A família de Clarice sofreu a perseguição aos judeus, durante a Guerra Civil Russa de 1918-1921. Seu nascimento ocorreu em Chechelnyk, enquanto percorriam várias aldeias da Ucrânia, antes da viagem de emigração ao continente americano. Chegou ao Brasil quando tinha dois  anos de idade.
A família chegou a Maceió em março de 1922, sendo recebida por Zaina, irmã de Mania, e seu marido e primo José Rabin. Por iniciativa de seu pai, à exceção de Tania – irmã, todos mudaram de nome: o pai passou a se chamar Pedro; Mania, Marieta; Leia — irmã, Elisa; e Haia, Clarice. Pedro passou a trabalhar com Rabin, já um próspero comerciante.
Clarice Lispector começou a escrever logo que aprendeu a ler, na cidade do Recife, onde passou parte da infância. Falava vários idiomas, entre eles o francês e inglês. Cresceu ouvindo no âmbito domiciliar o idioma materno, o iídiche. Foi hospitalizada pouco tempo depois da publicação do romance “A Hora da Estrela” com câncer inoperável no ovário, diagnóstico desconhecido por ela. Faleceu no dia 9 de dezembro de 1977, um dia antes de seu 57° aniversário. Foi inumada no Cemitério Israelita do Caju, no Rio de Janeiro, em 11 de dezembro.
Mas isto é o que registra a enciclopédia livre da wikipédia. Sobre esta misteriosa criatura humana, angustiada e inesperada sempre, em suas visões epifânias, importa mais intuir o que se oculta sob as dobras da palavra, no entre-lugar do interdito. Pois, tendo sido autora de fato e direito existida, foi também personagem de si mesma. Tanto assim que, internada, ao ver os lençóis de sua cama empapados de sangue, tentou sair do quarto, sendo contida pela enfermeira, a quem empurrou, e no desespero de não poder escapar dali, gritou: “Você matou meu personagem!”.
Mesmo sendo a misteriosa Clarice, de que falou Caetano Veloso, em canção bela e antiga, ela como mãe provedora e cidadã pagadora de impostos. A escritora tinha que se virar, vendendo textos jornalísticos. Ou seja: vendia o miolo da cabeça para comprar o miolo do pão. Escreveu até mesmo colunas de amenidades para madames deslumbradas, ou simples donas de casa, a quem passava receitas bem de classe média metida a besta. Para ganhar algum din-din, mas certamente para descansar de suas profundezas — pois viver todo o tempo no mistério não deve ser moleza.
Fernando Sabino disse-lhe, em entrevista, que o sucesso atrapalha o artista, pois neutraliza sua vontade de se afirmar. Clarice confessou ao amigo Fernando Sabino que também tinha medo do sucesso: “Antes, durante e depois do ato criador eu tenho medo do sucesso. Acho que é grande demais para mim!”. Ademais, fazer sucesso deve mesmo inspirar medo a quem ambicione tê-lo, já que no Brasil ele é recebido como ofensa pessoal, no dizer de Antonio Carlos Jobim. Clariceamente falando, digo que a morte só é um problema enquanto estamos vivos. Embora digam que é o indesejado repouso, no fundo, a morte é apenas um recurso da vida, para continuar eternamente viva.
Para alguns — não para todos — a morte pode ser uma justificação da vida. Embora a morte possa justificar uma vida, nenhuma vida pode ser tão grandiosa, que possa justificar a sua morte. Dou os trâmites por findos, insisto no quesito: a não ser esta estranha e misteriosa Clarice, a senhora Lispector existiu, de verdade?


sábado, 24 de junho de 2017

Luiz Ruffato / Fernando e Clarice



Fernando e Clarice

Pessoa e Lispector têm um lugar quase inacessível ao comum dos artistas


LUIZ RUFFATO
10 DEZ 2013 - 18:44 COT


Recentemente, estive em Lisboa para participar, a convite da presidenta da Casa Fernando Pessoa, a escritora Inês Pedrosa, do terceiro congresso internacional sobre a vida e a obra do poeta português. Durante três dias, 210 estudiosos de oito países discutiram sobre a produção deste que talvez seja caso único na história da literatura mundial, um artista que, para sentir-se, precisou multiplicar-se: dependendo dos critérios da contagem, listam-se mais de 100 heterônimos usados nos cerca de 25 mil documentos escritos em português, inglês e francês atribuídos a Fernando Pessoa.
Os especialistas se debruçam com lupa sobre cada folha de papel manuscrita em uma caligrafia quase ilegível, buscando encontrar a verdadeira lição de um texto encontrado no mítico baú hoje sob a guarda da Biblioteca Nacional de Portugal, que pode ser um poema, um conto, uma consideração sobre filosofia, política, estética, turismo, economia, ou a montagem do “romance sem ação” Livro do Desassossego, do semi-heterônimo Bernardo Soares. Os debates chegam a ficar tão acalorados que não são incomuns os bate-bocas entre congressistas – afinal, antes de peritos, são homens e mulheres movidos pela paixão que Pessoa desperta.
Fernando Pessoa é um desses raríssimos fenômenos de autor que, embora sequestrado pelo discurso acadêmico, conversa de maneira direta com o leitor comum – e quando me refiro ao leitor comum, estou evocando aquele que não se guia por indicações ou sugestões de conhecedores, mas por seu próprio gosto pessoal. São milhares de exemplares vendidos todos os anos, em diversas línguas, principalmente de antologias de poemas assinados por ele mesmo e por seus mais conhecidos heterônimos Álvaro de Campos, Alberto Caeiro e Ricardo Reis. Números que vêm aumentando de forma exponencial desde 2006, quando os direitos de sua obra caíram em domínio público e editoras passaram a oferecer publicações de cunho popular, seja pelo preço, seja pela acessibilidade (textos sem variantes, explicações ou contextualizações, por exemplo).

As páginas na Internet dedicadas a divulgar a obra de Fernando Pessoa somam-se aos milhares. Suas palavras, na íntegra ou em retalhos, são usadas para sublinhar estados de ânimo, conquistar amores, desfazer relações, consolar, convencer... Todo mundo recorre, em algum momento da vida, às reflexões contidas nessa espécie de vade-mécum moderno. Para arrepio de muitos pessoanos, Fernando Pessoa tornou-se uma pitonisa e seus livros oráculos...
Só conheço um caso parecido na literatura de língua portuguesa, a de autor considerado, sem restrições, como alta literatura pelo mundo acadêmico, e abraçado e amado pelo leitor comum: Clarice Lispector. Em maio deste ano, participei da 39ª Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, e, no encerramento do evento, convidaram-me para compor uma mesa em homenagem à escritora brasileira. Um público entusiasmado lotava o anfiteatro: as poltronas não foram suficientes e havia pessoas de pé e sentadas pelos degraus.
Notícias chegam de várias partes do mundo. Na Feira de Frankfurt deste ano, na qual o Brasil foi o país homenageado, brilhava o rosto magnífico de Clarice. No verão novaiorquino, Clarice. Na França, onde é publicada desde a década de 1950, reina absoluta Clarice. No Brasil, o interesse por Clarice Lispector ultrapassa os limites do literário. Além de sua bibliografia clássica, composta por romances, contos e crônicas, e de biografias e ensaios críticos que esmiúçam sua trajetória pessoal e profissional, os leitores contam com um amplo cardápio que busca abarcar os mais diversos interesses da autora. Os pesquisadores encontraram, não em um baú como o de Fernando Pessoa, mas em jornais e revistas, material suficiente para inundar o mercado com compilações, correspondência, aconselhamentos, entrevistas, traduções, pinturas... Além disso, milhares de páginas na Internet reproduzem frases, pensamentos e citações de Clarice, incorporada ao gosto popular como autoridade em questões do cotidiano, particularmente no que tange ao universo feminino.
Fernando Pessoa e Clarice Lispector alcançaram um lugar quase inacessível ao comum dos artistas: estabelecer diálogos distintos com estudiosos e leitores comuns, e ser venerados por ambos...


sexta-feira, 23 de junho de 2017

Luiz Ruffato / Meus romances brasileiros preferidos



Meus romances brasileiros preferidos

Outra lista, desta vez contemplando apenas autores nacionais, limitada a autores que já se foram e livros publicados até 1977


LUIZ RUFFATO
9 DEZ 2014 - 06:31 COT


Alguns leitores que consultaram a lista dos meus romances preferidos, publicada na edição passada, solicitaram outra, desta vez contemplando apenas autores nacionais. Aceitei arrolar minhas predileções, mas, neste caso, tenho que explicar e justificar algumas opções. A primeira delas: limitei-me a autores mortos, com a raríssima exceção de Raduan Nassar, que deixou de escrever ainda nos anos de 1970. Portanto, circunscrevi meu universo de escolhas até àquela década – o título mais recente é “A hora da estrela”, de Clarice Lispector, publicado em 1977. Outra observação importante: achei melhor citar apenas uma obra de cada autor, mas alguns deles poderiam, com certeza, estar aqui presentes com mais de um trabalho (casos de Machado de Assis e Graciliano Ramos, por exemplo). Finalmente, repito: trata-se de uma lista inútil, por subjetiva e aleatória, mas que talvez, como a outra, desperte curiosidade a respeito de um autor ou de um título. Eis tudo, que é nada...

Os 20 melhores romances, por ordem alfabética:
A chuva imóvel (1963), de Campos de Carvalho (Uberaba, MG – 1916-1998) – O absurdo e o lirismo marcam esse questionamento amargo sobre a morte. Sem possuir uma trama ou um claro fio condutor, o narrador nos conduz pelos terrenos úmidos e traiçoeiros da memória, neste que talvez seja, de seus quatro livros, o único em está ausente o humor. (José Olympio)
A hora da estrela (1977), de Clarice Lispector (Ucrânia – 1920-1977) – Sofisticada narrativa que mistura uma aguda consciência dos problemas sociais com uma elaborada discussão sobre o papel do intelectual em um país do Terceiro Mundo. Rodrigo, o escritor, discute seu processo de escrita, enquanto compõe a história da datilógrafa nordestina Macabéa. (Rocco)
A menina morta (1954), de Cornélio Penna (Petrópolis, RJ – 1896-1958) – O autor registra um dos mais poderosos retratos da escravidão no Brasil por meio do impacto provocado pela morte da filha de um barão do café fluminense nos habitantes da fazenda. Narrativa sombria, é um alentado estudo sobre os recônditos da alma humana. Infelizmente, fora de catálogo.
A Viúva Simões (1897) - Júlia Lopes de Almeida (Rio de Janeiro, RJ – 1862-1934) – A autora, injustamente desprezada pela crítica, urde neste livro uma corajosa e ousada trama em que mãe e filha disputam o amor pelo mesmo homem. Antirromântica, desenha uma mulher que, rompendo com padrões sociais, coloca em xeque valores de todos os tempos. (Mulheres – esgotado)
Crônica da casa assassinada (1959), de Lúcio Cardoso (Curvelo, MG – 1912-1968) – Romance sobre a decadência social e moral de uma tradicional família mineira, usa de uma complexa estrutura narrativa para falar de incesto, adultério, homossexualismo, loucura. A atmosfera de pesadelo nasce de um olhar intermediado pela poesia. (Civilização Brasileira)
Fogo morto (1943), de José Lins do Rego (Pilar, PB – 1901-1957) – Último volume do chamado “ciclo da cana-de-açúcar” mostra, com a decadência do Engenho Santa Fé, não só o fim de uma era econômica, mas principalmente a transformação de um mundo, cujos valores baseiam-se na violência, física e psicológica, na ignorância e na corrupção. (José Olympio)
Grande Sertão: veredas (1956), de Guimarães Rosa (Cordisburgo, MG – 1908-1967) – Riobaldo Tatarana desfia sua história num jorro compacto, servindo-se de uma linguagem arrebatadora. Seu companheirismo com Diadorim na jagunçagem pelos sertões de Minas Gerais encobre segredos e dúvidas, a respeito do visto e do indizível. (Nova Fronteira)
Lavoura arcaica (1975), de Raduan Nassar (Pindorama, SP – 1935) – Autópsia de uma família cujos valores, baseados na culpa e na punição, engendram a intolerância e a frustração. Narrado de forma não linear, conta a história da fuga de André da sombra castradora do pai, e sua volta para casa, o que acabará gerando uma tragédia. (Companhia das Letras)
Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), de Machado de Assis (Rio de Janeiro, RJ – 1839-1908) – Dedicado “ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver”, marca a entrada de Machado de Assis no rol dos maiores autores da literatura universal. Cínico e sarcástico, fala ao Brasil de todos os tempos. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
Memórias de um sargento de milícias (1854), de Manuel Antônio de Almeida (Rio de Janeiro, RJ – 1831-1861) – Narrativa que beira o picaresco em uma época de domínio das histórias românticas, tem como protagonista um sujeito que tudo faz para se dar bem na vida. Espécie de ilustração do homem comum brasileiro. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
Memórias sentimentais de João Miramar (1924), de Oswald de Andrade (São Paulo, SP – 1890-1954) – Escrito em fragmentos e em estilos os mais diversos, usa do sarcasmo para expor a vida do protagonista, João Miramar. Ao fim e ao cabo, trata-se da visão de mundo da elite brasileira, com seu autismo social e absoluto desprezo pelo país. (Globo – esgotado)
O Ateneu (1888), de Raul Pompéia (Angra dos Reis, RJ – 1863-1895) – “Romance de formação”, acompanha as agruras de um sensível garoto de 11 anos no universo de um colégio que prima pela disciplina. Microcosmo da sociedade do fim do século XIX, expõe a violência e a crueldade por trás da fachada da moralidade. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
O cortiço (1890), de Aluísio Azevedo (São Luís, MA – 1857-1913) – Romance coletivo, expõe, de maneira brilhante, o processo de formação social do Brasil, por meio de histórias paralelas. O aristocrata decadente, o burguês ignorante em ascensão, a miséria atávica a que está agrilhoada a população pobre. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
O risco do bordado (1970), de Autran Dourado (Patos de Minas, MG – 1926-2012) – Memorial afetivo, acompanha a visita João Fonseca Ribeiro, alter ego do autor, à mítica cidade do interior de Minas Gerais, Duas Pontes. Pelas ruas ele esbarra, todo o tempo, com lembranças que reavivam o passado, contaminam o presente e determinam o futuro. (Rocco)
O tempo e o vento (1942, 1951, 1962), de Érico Veríssimo (Cruz Alta, RS – 1905-1975) – Composta por sete tomos, o leitor acompanha mais de um século e meio de história do Brasil – centrada na formação do Rio Grande do Sul, pouco a pouco se espraia para o resto do país. Um dos painéis mais completos sobre a mentalidade política nacional. (Companhia das Letras)
Os ratos (1935), de Dyonélio Machado (Quaraí, RS – 1895-1985) – Naziazeno tem uma dívida com o leiteiro. Para saldá-la, percorre por um dia inteiro as ruas de Porto Alegre em busca de alguém que possa lhe emprestar dinheiro. Narrativa do desamparo, possui tal maestria que o real a todo momento parece se dissipar numa quase irrealidade. (Planeta)
Recordações do escrivão Isaías Caminha (1909), de Lima Barreto (Rio de Janeiro, RJ – 1881-1922) – Culto e refinado, o protagonista não consegue se inserir na sociedade porque é negro. Narrativa sobre o preconceito racial, descreve uma realidade, do começo do século XX, que pouco difere da dos dias atuais. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.
Sargento Getúlio (1971), de João Ubaldo Ribeiro (Itaparica, BA – 1941-2014) – O protagonista é encarregado de levar um preso político até Aracaju. No trajeto, há uma reviravolta política e o coronel de quem o Sargento Getúlio é homem de confiança, emite uma contraordem, que ele não irá acatar, mergulhando-os em um mar de violência absurda. (Alfaguara)
São Bernardo (1934), de Graciliano Ramos (Palmeira dos Índios, AL – 1892-1953) – Paulo Honório expõe suas lembranças, de trabalhador de eito a grande fazendeiro, para tentar compreender seu fim, solitário e amargo. Ambicioso, cruel, inescrupuloso, avaro financeira e afetivamente, quanto mais acumula posses, mais intolerante se transforma. (Record)
Senhora (1875), de José de Alencar (Messejana, CE – 1829-1877) – Moça pobre, Aurélia recebe de herança uma grande fortuna e resolve se vingar das humilhações sofridas. Para isso, compra um marido, financeiramente falido. Retrato perfeito da substituição dos valores da aristocracia decadente pelos da burguesia ascendente. Há inúmeras edições, das excelentes às péssimas.