segunda-feira, 29 de maio de 2017

Clint Eastwood / “Os filmes devem ser emocionantes, não intelectuais”



Clint Eastwood: “Os filmes devem ser emocionantes, não intelectuais”




Cineasta participa de uma aula magna no festival, onde, sem muito entusiasmo, repassou sua vida e carreira

Encurvado, um pouco surdo e desarrumado, com pouca vontade de falar. Mas com brilho no olhar, e medindo suas palavras, proclamadas com perene tom juvenil. Clint Eastwood completará 87 anos no próximo dia 31, e o festival de Cannes o homenageou com um convite para dar uma aula de cinema. O ator e diretor só confirmou sua presença após confirmar que poderia encaixar o compromisso no seu calendário de torneios de golfe. A esta altura Eastwood não precisa provar nada a ninguém, e seu ato em Cannes foi um exemplo: preferiu uma conversa com o jornalista americano Kenneth Turan, outro veterano, que foi soltando perguntas amáveis sobre sua carreira e sua vida. Levantou bolas que o cineasta cortou com elegância e economia de esforço.
A economia de esforço é uma constante em sua carreira. Como alguns de seus mentores, Eastwood prefere rodar rápido. “Eu gosto dos primeiros takes porque você nunca conseguirá igualar a surpresa de ouvir um diálogo pela primeira vez. Alguns dos meus mestres, como Don Siegel, faziam assim. Por isso também não gosto dos ensaios, porque se você repetir muitos os diálogos eles ficam monótonos”, contava, sentado com certa inapetência, mas com um sorriso constante. “‘A análise leva à paralisia’, dizia Don. Ele era muito eficiente… claro que sempre se queixava dos produtores.” Sergio Leone, embora muito diferente em sua mise-en-scène, também corria. “Rodava rápido porque pensava rápido. Na verdade, estive durante os anos cinquenta fazendo papéis de qualquer tamanho, tanto no cinema como na televisão, e aí aprendi muito com diretores como Tay Garnett [de O Destino Bate à Sua Porta].”
Numa abarrotada sala Buñuel, com os chefões da Warner – o estúdio para o qual trabalha há décadas – na primeira fila, o cineasta recordou alguns de seus títulos. Por exemplo, Os Imperdoáveis, que no sábado voltou a ser exibido no festival francês, em cópia restaurada. “Eu me diverti muito de vê-lo, e descobri algumas coisas que tinha esquecido. O roteiro me chegou como muitos outros nos anos oitenta, mas este me pareceu perfeito para ser meu último western, estava lindamente escrito por David Webb Peoples”, contou. Entretanto, o texto passou quase uma década fechado num armário. “Um leitor de roteiros da minha produtora o odiou. Por sorte, não dei bola para ele e afinal o filmei.”


“Como diretor eu gostaria de trabalhar como o pessoal do serviço secreto, que você ouve falar baixo, e não se sabe com quem.”

Eastwood começou a atuar no colégio, quando, num trabalho escolar, foi ator em uma peça. “Havia um personagem… Não era retardado, mas sim um pouco lento, e o professor disse que era perfeito para mim. Ao final todos me cumprimentaram. Mas pedi não voltar a fazê-lo. Enfim, continuei estudando interpretação, tinha garotas bonitas...” De sua infância recordou que nasceu durante a Grande Depressão, da qual só tomaria consciência lá pelos 6 ou 7 anos. “Meu pai era dono de um posto de gasolina, íamos para cima e para baixo”, rememorou. Como todos os meninos, queria participar de um western e montar a cavalo, “ser como James Stewart, Gary Cooper e John Wayne”. Por que é tão atraente esse gênero? “Porque transporta para outra época, quando um indivíduo podia se virar sozinho, uma fantasia hoje quase impossível.”Foi contratado para a série Rawhide em 1959, e um dia seu agente lhe propôs que fosse à Itália filmar uma versão western de um filme japonês. “Obviamente eu disse que não. Mas ele insistiu para que eu lesse o roteiro. Descobri que era Yojimbo, logo eu, um fã do Kurosawa! Aceitei Por um Punhado de Dólares. Sergio fez westerns muito operísticos. Tinha ótimo olho para os rostos. Eu na verdade sempre me dei muito bem com os diretores europeus.”


“Não se deve levar as coisas muito a sério.”

Eastwood começou a dirigir com Perversa Paixão (1971), também atuando, embora com um só cachê. E chegou Perseguidor Implacável. “Eu disse a Don que era muito incorreta. Suponho que portar armas grandes é a realização do sonho de qualquer menino, embora hoje não seja bem visto. Estamos nos matando ao fazer isso, perdemos o senso de humor.”




Sobre O Estranho que Nós Amamos, cujo remake Sofia Coppola apresenta nesta semana em Cannes, comentou apenas que “é o primeiro filme com o qual fiz uma turnê mundial de divulgação”. Foi sucinto também ao falar de Alcatraz – Fuga ImpossívelBronco BillySobre Meninos e LobosAs Pontes de Madison e Menina de Ouro. Mas confessou que, após seis participações em Cannes e um só prêmio, nunca se importou por não ter recebido a Palma de Ouro. “Fui presidente do júri e sei como é complexo colocar todos de acordo. Eu vi Caro Diário e achei uma chatice, sendo que foi um sucesso. Não se deve levar as coisas muito a sério. Como diretor também tento ser leve, não gritar. Eu gostaria de trabalhar como o pessoal do serviço secreto, que você ouve falar baixo, e não se sabe com quem”.
O cineasta contou que gosta de trabalhar – embora prefira o golfe – e que já está envolvido em seu próximo filme, The 15:17 to Paris, sobre os turistas norte-americanos que dominaram um terrorista e impediram um atentado num trem entre Amsterdã e Paris, em agosto de 2015. “Mas não quero antecipar muito, além de que o material é interessante [expressão que repetiu várias vezes na palestra]".
Sobre o cinema, deixou claros seus pensamentos: “Os filmes precisam ser emocionantes, porque não é uma arte intelectual. Embora cada um tenha o seu estilo e seja respeitável”. Só “algumas vezes” sente falta de atuar, e não acha difícil dirigir “se o material é interessante”. Não vê o cinema atual, porque trabalha muito, mas gosta de eventualmente revisitar O Crepúsculo dos Deuses, de Billy Wilder. “Aos meus filhos atores aconselho que sempre façam o melhor que puderem, e que ensaiem e ensaiem … mas não me dão muita bola.” A última pergunta foi aberta: queria contar algo de outro filme ou algo que tenha esquecido? “A verdade é que não.”




domingo, 28 de maio de 2017

Clint Eastwood / “Leio ma história e vejo o filme que vou fazer. Isso é tudo”

Clint Eastwood

Clint Eastwood: “Leio uma história e vejo o filme que vou fazer. Isso é tudo”

Cineasta estreia “Sully”, sobre piloto que fez pouso de emergência com 156 passageiros no Rio Hudson





ROCÍO AYUSO
Los Angeles 3 NOV 2016 - 17:28 COT





O diretor e ator Clint Eastwood, durante a apresentação de “Scully” em Los Angeles, em setembro. / VÍDEO: Trailer do filme “Sully”. REUTERS

Clint Eastwood é um homem de poucas palavras e muitas histórias. Especificamente 35 filmes como diretor, uma carreira cada vez mais rápida à medida que se aproxima dos 90 anos. E isso sem contar sua longa filmografia como ator. Talvez por isso, aos 86 anos, o intérprete, cineasta, produtor e compositor não queira perder tempo falando sobre o que faz. Prefere contar com a câmera. “Não é uma questão de estilo. Leio uma história e vejo o filme que quero fazer. Isso é tudo. Depois, à medida do que vou fazendo, vou pensando que posso colocar um pouco mais disso ou daquilo. Não há nenhum segredo. Em resumo, como Sully, quando filmo faço o que tenho que fazer”, admite o diretor durante a apresentação em Los Angeles de Sully.

sexta-feira, 26 de maio de 2017

Anton Tchekhov / O inimigo


Anton Tchekhov

A noite desceu há muito sobre a paisa-gem de neve, uma noite escura e pro-funda, que envolve seres e coisas no silêncio e na paz. Àquela hora, talvez somente Varka esteja ainda acordada, debruçada sobre o berço onde o menino não quer dormir. Varka tem apenas treze anos, é pouco mais que menina, e seus olhos sonolentos são tristes e vagos. Agora impulsiona suavemente o berço e canta baixinho, com voz branda, uma canção de ninar. “Dorme, menino bonito, que o bicho vem pegar…” Uma lamparina verde, acesa junto ao ícone, enche o quarto com sua luz fraca e incerta; peças de roupa, pendidas de uma corda que atravessa o compartimento, flutuam de leve. A luz projeta no teto um grande círculo verde, as sombras das peças de roupa se agitam como se fossem sacudidas pelo vento, e tremem inquietas so-bre a estufa, sobre Varka e sobre o berço.

quinta-feira, 25 de maio de 2017

Anton Tchekhov / Varka

Niña dormida
Camilo Minero
Anton Tchekhov
VARKA


ANTON CHEJOV / DÉJAME DORMIR (De otros mundos)
Anoitece. Varka balança com o pé um berço onde chora uma criança, cantarolando monotonamente:
— Bain bainscki bain…
Uma lâmpada verde brilha diante de uma imagem de santo. Um par de grandes calças negras pende de uma corda. A lâmpada projeta uma mancha verde sobre as coisas e as calças fazem dançar sombras na parede e no berço. A chama vacila como tocada pelo vendo. O ar é sufocante, impregnado de um odor de sapatos, de couro, de tinta.

segunda-feira, 22 de maio de 2017

Elizabeth Bishop / Poeta, lésbica, modernista e brasileira de adoção


Elizabeth Bishop

Poeta, lésbica, modernista e brasileira de adoção: como o mundo está redescobrindo Elizabeth Bishop

Uma biografia e uma peça de teatro recuperam a figura da poeta norte-americana, que construiu parte de sua obra no Rio


MARTA REBÓN
9 ABR 2017 - 19:18 COT



Elizabeth Bishop, fotografada aos 43 anos na fazenda Samambaia.
Elizabeth Bishop, fotografada aos 43 anos na fazenda Samambaia.

Em 1951, aos 40 anos, a poeta norte-americana Elizabeth Bishop parte de Nova York em um cargueiro com o desejo de dar a volta ao mundo. Não é uma simples turista em busca de prazeres e inspiração. Ao se expatriar, deseja soltar lastro, escapar de um pesado fardo cheio de episódios de depressão e alcoolismo, alternados com fortes ataques de asma e surtos de eczemas, que ameaçam truncar sua carreira como escritora. A competitiva cena literária nova-iorquina, somada à solidão que ali a invade, choca-se com seu extremado acanhamento e fragilidade emocional, marcados pela ausência de um pai que, morto prematuramente, não chegou a presenciar seu primeiro aniversário, e de uma mãe que, afundada pela dor, não tardou a ser internada num manicômio e a desaparecer por completo da sua vida.


Anotações que mostram o rigor com que Bishop tratava seus poemas.
Anotações que mostram o rigor com que Bishop tratava seus poemas.


A partir de então, Elizabeth ficará às vezes sob os cuidados da família paterna, e às vezes da materna, sem chegar a encontrar o calor de um verdadeiro lar. Na verdade, quando vive com as irmãs de sua mãe, seu “sádico” tio a submete a abusos que só confessará, décadas mais tarde, ao seu psiquiatra, como revela a recente biografia Miracle for Breakfast (“milagre no café da manhã”), de Megan Marshall. Não é de estranhar que, numa entrevista à The Paris Review, Bishop tenha confessado que quando menina se sentia como uma convidada. “Acho que sempre me senti assim”, dizia. Marshall, ex-aspirante a jovem poeta e ex-aluna dela em Harvard em 1976, conta por email que Bishop “não acreditava que se pudesse ensinar a escrever, e dizia que os poemas, no seu caso, começavam como um mistério e uma surpresa, e que os concluía à base um de grande esforço e de árduo trabalho”.
O navio SS Bowplate, cujo destino era a Terra do Fogo, faz sua primeira escala no porto de Santos, e a escritora a aproveita para visitar, no Rio do Janeiro, um compatriota dela e sua mulher, Maria Carlota Costallat de Macedo Soares, a quem havia conhecido quatro anos antes em Manhattan. A viagem toma então uma direção imprevista: obrigada a passar semanas de cama por causa de uma intoxicação virulenta, acabará por permanecer mais de quinze anos no Brasil. Sua anfitriã, a quem todos chamam de Lotta, nascera em Paris e era filha de um magnata da imprensa carioca.


Lotta de Macedo Soares, companheira de Elizabeth Bishop durante 14 anos.
Lotta de Macedo Soares, companheira de Elizabeth Bishop durante 14 anos.


Cosmopolita e envolvida na vida cultural e política do seu país, abre-lhe de par em par as portas da sua impressionante fazenda Samambaia, em Petrópolis, 70 quilômetros ao norte do Rio. Quando a relação entre ambas se estreita, Lotta, arquiteta e paisagista autodidata, manda construir um estúdio para a poeta. Suspenso no ar como um mirante de vidro, ergue-se de costas para a casa, alheio à azáfama doméstica e arrulhado pelas águas de um riacho.
O escritor Michael Sledge reconstrói em A Arte de Perder (Leya, 2011) a relação sentimental entre as duas mulheres. Uma história vivida com intensidade e com desenlace trágico: Lotta morreu de overdose – não se sabe se acidental – durante uma visita à sua já ex-amante em Nova York, em 1967. Durante os 14 anos de vida comum, a escritora cria memoráveis peças em prosa, nas quais recupera, por exemplo, os ecos da sua difícil infância na Nova Escócia (Canadá) e em Massachusetts; publica sua segunda coletânea poética, Uma Primavera Fria, prêmio Pulitzer em 1956, e concebe um terceiro, Questões de Viagem (1965), no qual lança a pergunta: “É falta de imaginação o que nos obriga a vir / a lugares imaginados, em vez de ficar em casa?”. A paisagista carioca, por sua vez, trabalha infatigável, durante os últimos anos do relacionamento, para dar à sua cidade o imponente Aterro do Flamengo: um projeto exaustivo, que cobrará um alto preço pessoal.


Parte da casa em que Bishop e Lotta de Macedo Soares viveram juntas.
Parte da casa em que Bishop e Lotta de Macedo Soares viveram juntas.


Tudo o que Lotta tem de expansiva e segura, Bishop tem de tímida e introspectiva, mas da combinação desses polos opostos surge um vínculo que transformará a vida e a obra de ambas. Para Bishop, isso representou fincar raízes pela primeira vez em um lugar e se permitir ser merecedora do amor de alguém: "Às vezes, parece que só as pessoas inteligentes são estúpidas o suficiente para se apaixonar, e que só as estúpidas são inteligentes o suficiente para se permitirem ser amadas", escreveu em um caderno. Quando seus caminhos se cruzam -- Bishop já havia publicado um primeiro livro de poemas, Norte e Sul. Sledge observa que sua "escrita era um trabalho tão rigoroso que deixar um poema em um ponto aceitável podia levar anos".
Mais do que criar um mundo, como fazem muitos poetas, Bishop descreve com sobriedade o que vê, sem nunca ceder ao sentimentalismo, que detestava, e parece encorajar sossegadamente o leitor ao observá-lo mais de perto. Sua poesia é de percepção, na qual as palavras transmitem uma verdade transitória, nunca absoluta, sem entrar em detalhes em confissões ou verter frases categóricas. Em sua obra convergem, estranhamente, o impessoal com o íntimo. Bishop evitava os rótulos, quaisquer fossem eles: mulher, lésbica, modernista ou norte-americana. Sua dúzia de histórias e quatro livros de poemas, um por década desde seu começo, são um bom exemplo da exigência com a qual enfrentava cada composição.


La poeta, à esquerda, com o arquiteto Harold Leeds, o diretor Wheaton Galentine e Lotta de Macedo Soares.
La poeta, à esquerda, com o arquiteto Harold Leeds, o diretor Wheaton Galentine e Lotta de Macedo Soares.


Megan Marshall, sua biógrafa, acredita que a popularidade da escritora continuará aumentando e menciona, entre outros exemplos, a recente obra de teatro de Sarah Ruhl, Dear Elizabeth, que condensa 800 páginas de relacionamento epistolar entre Bishop e o também poeta Robert Lowell. Em um de seus melhores poemas, Bishop nos lembra de algo muito simples, embora essencial, que viver é aprender a conjugar o verbo perder: "Perca um pouco a cada dia. / Aceite austero, a chave perdida, a hora gasta bestamente. / A arte de perder não é nenhum mistério".


A poetisa com a cozinheira e escritora culinária Rosemary Manell.
A poetisa com a cozinheira e escritora culinária Rosemary Manell.


Marshall aponta que Bishop nos "mostra que a perda é uma experiência universal, e, ao escrever tão bem sobre esse tema, consegue criar, paradoxalmente, algo que perdura". Acrescenta que a poeta era amante do espanhol, idioma que aprendeu quando adulta e ao qual se sentia unida "já que passou vários meses durante a Segunda Guerra Mundial no México, onde conheceu Pablo Neruda, e foi então que deve ter sabido da existência do poeta Miguel Hernández, cuja Elegia tentou traduzir em 1970, e que certamente influenciou a composição de seu imortal Uma Arte, sua elegia".


sexta-feira, 19 de maio de 2017

Margaret Atwood / Maldita profecía


Margaret Atwood

Margaret Atwood: Maldita profecia

Autora canadense escreve novo prefácio para 'O Conto da Aia', sobre uma ditadura anti-feminista

Texto é base de série com mesmo nome original, 'The Handmaid's Tale', que ainda não estreou no Brasil



Na primavera de 1984 comecei a escrever um romance que inicialmente não ia se chamar O Conto da Aia. Escrevi à mão, quase sempre em uns cadernos amarelos com pauta, e depois transcrevia meus rabiscos quase ilegíveis com uma gigantesca máquina de escrever alugada, com teclado alemão.
Estava há um ou dois anos evitando enfrentar esse livro. Parecia um empreendimento arriscado. Tinha lido a fundo muita ficção científica, ficção especulativa, utopias e distopias, desde o tempo da escola, lá pelos anos cinquenta, mas nunca tinha escrito um livro desse tipo. Seria capaz?

Em 1984, a premissa principal parecia um tanto excessiva, mesmo para mim. Convenceria os leitores de que nos Estados Unidos tinha ocorrido um golpe de Estado que transformou a democracia liberal até então existente em uma ditadura teocrática que levava tudo ao pé da letra? No livro, a Constituição e o Congresso não existem mais; a República de Gilead se levanta sobre os fundamentos das raízes do puritanismo do século XVII, que sempre estiveram sob a América moderna que pensávamos conhecer.
No livro, a população está em declínio por causa da poluição ambiental e diminui a capacidade de ter filhos. Como nos regimes totalitários – ou em qualquer sociedade radicalmente hierarquizada –, a classe dominante monopoliza tudo que tem algum valor e a elite do regime consegue dividir entre si as fêmeas férteis como Aias. Isso tem um precedente bíblico na história de Jacó, suas duas esposas, Raquel e Lia, e as duas empregadas delas. Um homem, quatro mulheres e doze descendentes que as criadas não podiam reivindicar. Pertenciam às esposas.
Ao longo dos anos, O Conto da Aia adotou muitas formas diferentes. Foi traduzido a 40 línguas, ou talvez mais. Em 1989, foi adaptada ao cinema. Foi uma ópera e um balé. Está sendo feita uma graphic novel. E logo vai estrear uma série de televisão.
Participei nas filmagens desta última com uma pequena participação. É uma cena na qual as Aias recém-contratadas são submetidas a uma lavagem cerebral, no estilo praticado pelos Guardas Vermelhos. Devem aprender a renunciar a suas antigas identidades, a assimilar o lugar e as obrigações que correspondem, a entender que não têm nenhum direito real, mas que vão obter proteção, até certo ponto, desde que sejam capazes de se conformar e ter baixa estima para aceitar o destino que lhes é atribuído sem se rebelar ou fugir.


O controle das mulheres e seus descendentes foi a base de todo regime repressivo.

As Aias estão sentadas em círculo, enquanto as Tias, equipadas com suas varas elétricas, forçam todas a participar no que agora – não em 1984 – é chamado de “a desonra das vagabundas” contra uma delas, Jeanine, que é obrigada a relatar o estupro grupal que sofreu na adolescência. “Foi culpa dela, ela provocou”, gritam as outras Aias.
Embora seja apenas uma série de TV, a cena me produziu um choque horrível. Era muito parecido, demais, com a história. Sim, as mulheres se unem para atacar outras mulheres. Sim, acusam as outras para se livrarem delas: vemos com absoluta transparência na era das redes sociais, que tanto favorecem a formação de enxames. Sim, aceitam encantadas situações que lhes dão poder sobre outras mulheres, mesmo – e talvez especialmente – em sistemas que no geral concedem escasso poder às mulheres: no entanto, todo poder é relativo e em tempos difíceis é evidente que ter pouco é melhor do que não ter nenhum. Algumas das Tias que exercem o controle são verdadeiras crentes e acham que estão fazendo um favor às Aias: pelo menos não foram enviadas para limpar resíduos tóxicos; pelo menos, neste mundo novo feliz, ninguém vai violá-las, ou não exatamente, ou pelo menos quem as violar não é um desconhecido. Entre as Tias algumas são sádicas. Outras são oportunistas. E serve para elas pegar algumas das reivindicações favoritas do feminismo de 1984 – como as campanhas contra a pornografia e a exigência de maior segurança contra os ataques sexuais – e usá-los em benefício próprio. Como dizia: a vida real.
O que me leva às três perguntas que me fazem com frequência. A primeira: O Conto da Aia é um romance feminista? Se isso significa que é um tratado ideológica no qual todas as mulheres são anjos ou estão vitimizadas e, portanto, perderam a capacidade de escolher moralmente, não. Se quer dizer que é um romance no qual as mulheres são seres humanos e além disso são interessantes e importantes, e o que acontece com elas é crucial para o tema, a estrutura e o enredo do livro... Então, sim. Nesse sentido, muitos livros são “feministas”.




Ilustração de Anna e Elena Balbusso para a edição de 'O Conto da Aia' da The Folio Society.
Ilustração de Anna e Elena Balbusso para a edição de 'O Conto da Aia' da The Folio Society.


Por que são interessantes e importantes? Porque na vida real as mulheres são interessantes e importantes. Não são um subproduto da natureza, não representam um papel secundário no destino da humanidade, e todas as sociedades souberam disso. Sem mulheres capazes de dar à luz, a população humana seria extinta. Por isso as violações em massa e o assassinato de mulheres, garotas e meninas foi uma característica comum das guerras genocidas, ou de qualquer ação destinada a subjugar e explorar uma população. O controle das mulheres e seus descendentes foi a base de todo regime repressivo do planeta. Napoleão e sua “bucha de canhão”, a escravidão e a mercadoria humana, uma prática eternamente renovada: ambos se encaixam aqui. Teríamos que perguntar àqueles que promovem a maternidade forçada: Cui bono? Quem se beneficia? Às vezes um setor, às vezes, outro. Nunca ninguém.
A segunda: O Conto da Aia é um romance contra a religião? Mais uma vez, depende do que se quer dizer. É verdade, um grupo de homens autoritários assume o controle e tenta estabelecer uma versão extrema do patriarcado no qual as mulheres (como os escravos americanos no século XIX) estão proibidos de ler. Mais ainda, não podem ter nenhum controle sobre o dinheiro ou trabalhar fora de casa. O regime usa símbolos bíblicos, como, sem dúvida, faria qualquer regime autoritário que quisesse dominar os Estados Unidos.
As roupas recatadas das mulheres em Gilead vêm da iconografia religiosa ocidental: as Esposas usam o azul da pureza, da Virgem Maria; as Aias usam vermelho pelo sangue do parto, mas também por Maria Madalena. Além disso, o vermelho é mais fácil de ver se você quiser fugir. Muitos regimes totalitários recorreram à roupa – tanto proibindo alguns itens, como obrigando a usar outros – para identificar e controlar as pessoas – pensemos nas estrelas amarelas, e no roxo dos romanos –, e em muitos casos se esconderam atrás da religião para governar. Assim é muito mais fácil apontar os hereges.
No livro, a religião dominante se ocupa de conseguir o controle doutrinário e consegue aniquilar as denominações religiosas que são familiares. Como os bolcheviques destruíram os mencheviques para eliminar a concorrência política, e as várias facções dos Guardas Vermelhos lutaram entre si até a morte, católicos e batistas se transformam em objeto de identificação e aniquilação. Os quakers passaram para a clandestinidade e montaram uma rota de fuga para o Canadá. Então, o livro não é contra a religião. É contra o uso da religião como uma fachada para a tirania: são coisas muito diferentes.
O Conto da Aia é uma previsão? É a terceira pergunta que costumam me fazer com mais frequência, à medida que certas forças da sociedade norte-americana ocupam o poder e aprovam decretos incorporando o que sempre tinham dito que queriam fazer, mesmo em 1984, quando comecei a escrever o romance. Não, não é. Digamos que é uma antiprevisão: se este futuro pode ser descrito em detalhe, talvez não chegue a ocorrer. Mas não podemos confiar muito nessa ideia bem-intencionada.
O Conto da Aia baseou-se em muitas facetas diferentes: execuções grupais, leis suntuosas, queima de livros, o programa Lebensborn da SS e o roubo de crianças na Argentina pelos generais, a história da escravidão, a história da poligamia nos Estados Unidos... A lista é longa.
Mas falta uma forma literária à qual não mencionei: a literatura testemunhal. Offread registra sua história apenas como pode; depois, esconde-a com a confiança de que, com o passar dos anos, será descoberta por algum ser livre, capaz de entender e compartilhar. É um ato de esperança: toda história pressupõe um futuro leitor. Robinson Crusoé mantinha um diário. Também Samuel Pepys, Roméo Dallaire e Anne Frank.
Depois das recentes eleições nos Estados Unidos, proliferam medos e ansiedades. Dá a impressão de que as liberdades civis básicas estão em perigo, também muitos dos direitos conquistados pelas mulheres nas últimas décadas, mesmo ao longo dos séculos passados. Neste clima de divisão, em que parece estar crescendo a projeção de ódio contra muitos grupos e extremistas de toda denominação expressam seu desprezo às instituições democráticas, temos a certeza de que, em algum lugar, alguém – muitas pessoas, ouso dizer – está anotando tudo o que acontece a partir de sua própria experiência. Ou talvez recordem e escrevam mais tarde, se puderem.
Suas mensagens ficarão escondidas e reprimidas? Vão aparecer, séculos mais tarde, em uma casa velha, dentro de uma parede Vamos manter a esperança de que não chegaremos a isso. Eu confio que isso não vai acontecer.