terça-feira, 22 de setembro de 2015

Christopher Hitchens / O contestador no espelho

Chirstopher Hitchens
Christopher Hitchens
O contestador no espelho


A relação entre pais e filhos na Inglaterra da década de 50 era muito formal. Eric Ernest Hitchens e seu filho, Christopher, não fugiam à regra. Avesso a conversas, Eric era um homem comum, que trabalhou por décadas na Marinha britânica, apegado à estabilidade e nada contestador. Totalmente diferente do filho. Christopher Hitchens é um dos mais sagazes colunistas do jornalismo americano. Contribui para as revistas Vanity Fair e Slate (esta, online), e seus textos são republicados quinzenalmente por ÉPOCA. Em 1978, ele lidou com a morte do pai, acometido por um ataque cardíaco pouco tempo depois de saber que sofria de câncer no esôfago. Em junho, Hitchens descobriu ter a mesma doença do pai. Para fazer as sessões de quimioterapia, teve de cancelar o tour que faria para promover sua autobiografia, Hitch-22, a memoir (Hitch-22, memórias, Twelve Books, 435 páginas, sem previsão de lançamento no Brasil). Uma relativa ironia, porque Hitchens dá mais destaque no livro às contribuições para sua formação intelectual, sem se apegar muito a questões pessoais. 


O gosto pela contestação permeia o livro, a começar pelo título. Trata-se de uma referência à obra Catch-22, escrita em 1961 por Joseph Heller, em que o autor faz uma sátira à burocracia militar americana na Segunda Guerra Mundial. Nos Estados Unidos, “catch-22” tornou-se uma expressão para designar situações de difícil solução. Algo adequado para o modo de vida cético que Hitchens passou a ter com as frustrações ideológicas. Aos 15 anos, ele começou a demonstrar interesse por causas sociais – o que culminou na sua adesão à Internacional Socialista. Ele se via como um cara à frente do seu tempo, “uma daquelas pessoas da década de 60 com cara de década de 80”. “Eu vendia exemplares do 'Trabalhador Socialista', fazia grafite pró-vietcongs, discutia com os sociais-democratas, comunistas ou antitrotskistas”. Ao mesmo tempo, porém, sua racionalidade não o cegava. Ele sempre foi um crítico dos exageros do comunismo. A primeira grande decepção se deu em uma visita a Cuba, onde viu e viveu um regime totalitário que, segundo ele, controlava até seus horários para sair do hotel. 



Nos anos 80, Hitchens se muda para os EUA. Primeiramente, Washington. Depois, Nova York, que o fascina. “Como uma sociedade podia ser conservadora, liberal e revolucionária ao mesmo tempo?”. No fim daquela década, ele assiste à falência dos regimes comunistas, o que o torna ainda mais ácido sobre modelos políticos autoritários. Talvez a mudança de opinião mais radical tenha sido sobre o Iraque. Em sua juventude, na década de 70, Hitchens achava que Saddam Hussein se tornaria um socialista e traria progresso aos iraquianos. Trinta anos depois, para surpresa de muitos colegas, ele estava apoiando a guerra do Iraque, conduzida pelo ex-presidente George W. Bush com o argumento nunca provado de que Saddam tinha armas de destruição em massa. Durante visita ao país, em 2003, Hitchens diz ter ouvido de iraquianos que “sem o senhor Bush muitos deles já estariam mortos”. Mas seu aval à guerra causou uma perda humana, contada com detalhes em Hitch-22



Mark Daily, um jovem californiano de 23 anos, casou-se pouco tempo antes de ser enviado ao Iraque, onde ele morreu na explosão de uma granada, em janeiro de 2007. Até aí, nada demais. O que colocou Daily na vida de Hitchens, sem ele nem saber, foram seus próprios textos. Daily era contrário à guerra. Por meio de uma reportagem do jornal Los Angeles Times, Hitchens descobriu que a maneira como ele defendia e justificava a guerra no Iraque foi determinante para fazer Daily se alistar. O jovem contou à família que pretendia ser uma espécie de correspondente para Hitchens diretamente do front, mas o soldado, uma vez na guerra, não conseguiu contato com o autor. “Tanto lixo chega diariamente à minha caixa de emails, mas esse importante contato não me alcançou”, diz Hitchens. Quando teve conhecimento do caso, ele procurou a família de Daily, que o apresentou à história. Ele não se sentiu culpado, mas se deu conta da influência de suas opiniões. 



Alguns capítulos de Hitch-22 são dedicados a amigos de Hitchens que o influenciaram de alguma maneira. Um deles é James Fenton, poeta inglês, que dividiu casa com Hitchens em Oxford. Fenton foi o responsável por introduzir Hitchens nos vícios do cigarro e do álcool – sobre os quais ele evita falar durante o livro, embora assuma exageros. Fenton também ajudou Hitchens no começo de sua carreira como jornalista em Londres. Outro amigo antigo contemplado é o ensaísta britânico Martin Amis, de quem admira o sucesso com as mulheres. Foi Amis quem apresentou Hitchens a Margaret Thatcher, a Dama de Ferro. Ele a considerou “surpreendentemente sexy”. Em resposta, foi chamado de “garoto safado”. Com Salman Rushdie, autor dos Versos Satânicos – polêmico livro que provocou uma reação irada de líderes muçulmanos –, Hitchens compartilha opiniões contra o colonialismo. 



Nos poucos momentos em que fala da vida pessoal, Hitchens é sucinto. Narra rapidamente um relacionamento homossexual que teve com um garoto de sua idade, no colégio. Eles trocavam poemas e ficavam juntos, mas foram descobertos e obrigados a se afastar. Hitchens diz que a proibição o “matava”. Sobre a religião, também poucas palavras. Hitchens é ateu convicto (ele é autor do livro Deus Não é Grande) e nunca teve a religião como um assunto marcante dentro de casa. Sua mãe, Yvonne, a quem Hitchens agradece pelo interesse intelectual despertado nele, era judia, mas manteve isso em segredo até a morte, temendo as dificuldades que Hitchens e seu irmão, Peter, poderiam encontrar por serem de uma família. Ambos só souberam mais de dez anos depois de Yvonne morrer, por meio de uma tia. Hitchens classifica a religião como uma forma de imposição, pelo mais forte, de medo e amor. Logo, rezar pela saúde de alguém que não acredita em oração seria um grande paradoxo. O jornalista americano Jeffrey Goldberg, amigo de Hitchens, tocou justamente nesse assunto em um artigo no site da revista The Atlantic, com uma pergunta irônica. “Devemos orar por ele?”. Na semana passada, Goldberg entrevistou Hitchens, já bastante abatido pelo tratamento do câncer. Perguntou se ele se importava com as orações. “Não”. Mesmo que isso não mude nada, emendou Hitchens.


EPOCA





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