sexta-feira, 17 de julho de 2015

Rubem Fonseca / O filho

Ilustração de Triunfo Arciniegas
Rubem Fonseca
BIOGRAFIA
O FILHO

Jéssica tinha 16 anos quando ficou grávida.

É melhor tirar, disse a mãe dela. Você sabe quem é o pai?

Jéssica não sabia. Respondeu, não interessa quem é o pai, são todos uns merdas.

Combinaram que iam fazer o aborto na casa da mãe de santo d. Gertrudes, que fazia todos os partos e abortos daquela comunidade.

D. Gertrudes era uma mulher gorda, muito gorda, preta, muito preta, e suas rezas para afugentar os maus espíritos eram extremamente eficazes. D.Gertrudes fazia esconjurações, proferindo imprecações e rogando pragasmisturadas com bênçãos; fazia orações contra o quebranto e o mau-olhado;orações contra os espíritos obsessivos; orações para fechar o corpo contra todosos males; orações para exorcizar o demônio. E tinha uma oração especial, a Oração da Cabra Preta.

Na véspera de realizar o aborto, Jéssica falou com a mãe que havia decidido ter o filho e que se fosse menino ia se chamar Maicon e se fosse menina, Daiana. 

Vai ter o filho? 

Vou.

Ficou maluca. Como é que você vai criar? 

Qual o problema? Se der muito trabalho eu posso dar o bebê, ou melhor, posso vender. Tem um monte de gente interessada em comprar bebês. A Kate vendeu o bebê, você sabia? 

Vendeu? 

Vendeu. Mas não conta para ninguém. Ela me pediu segredo.

Naquele mesmo dia a mãe de Jéssica, d. Benedita, foi procurar a Kate.

Quando d. Benedita falou sobre a venda do bebê, Kate ficou branca. 

O pessoal não pode saber, pelo amor de Deus, o pessoal não pode saber. Por quê? Qual o problema?

Eu não disse lá em casa que tinha vendido, disse que tinha dado. Fiquei com o dinheiro só para mim, se o meu pai e a minha mãe souberem vão me encher de porrada. 

Quanto lhe pagaram? 

Não digo, não digo. 

Quem comprou? 

Chega, d. Benedita.

Kate se afastou correndo.

D. Benedita não desistiu. Foi procurar a mãe de santo d. Gertrudes e disse que queria fazer Kate lhe contar quem havia comprado o seu bebê. 

Misifia, isso é coisa de Satanás, disse d. Gertrudes, é preciso uma oração contra o demônio. Deve-se repetir muitas vezes, misifia.

D. Gertrudes fez repetidas vezes o sinal da cruz e começou a orar em voz alta: 

Eu, como criatura de Deus, feita à Sua semelhança e remida com o Seu santíssimo sangue, vos ponho preceito, demônio ou demônios, para que cessem os vossos delírios, para que esta criatura não seja jamais por vós atormentada com as vossas fúrias infernais. Pois o nome do Senhor é forte e poderoso, por quem eu vos cito e notifico, que vos ausenteis deste lugar que Deus Nosso Senhor vos destinar; porque com o nome de Jesus vos piso e rebato e vos aborreço do meu pensamento para fora. O Senhor esteja comigo e com todos nós, ausentes e presentes, para que tu, demônio, não possas jamais atormentar as criaturas do Senhor. Amarro-vos com as cadeias de São Paulo e com a toalha que limpou o santo rosto de Jesus Cristo para que jamais possais atormentar os viventes. 

Depois de recitar a sua oração, d. Gertrudes rodopiou pela sala e caiu no chão, desmaiada.

D. Benedita voltou a se encontrar com Kate, que, como se estivesse em transe, lhe contou quem comprara o bebê, a quantia, tudo.

Mas d. Benedita não disse isso para Jéssica. Estava decidida a vender o bebê ela mesma, pois precisava de dinheiro para comprar uma dentadura. 

O tempo foi passando e a barriga de Jéssica crescendo. Jéssica era uma menina miúda, raquítica, não chegava a ter um metro e meio de altura, mas a sua barriga era imensa, e as pessoas diziam que nunca tinham visto uma barriga daquele tamanho.

É mnino, dizia Jéssica, e vai ser grandão, grandão e bonito, vocês vão ver. Jéssica foi se arrastando ao cafofo de d. Gertrudes para ser examinada. 

Vai ser amanhã, disse d. Gertrudes. Venha preparada.

Jéssica dormiu mal aquela noite, pensando no filho. Não ia vender o bebê, queria lhe dar de mamar, seus peitos já estavam cheios de leite. 

No dia seguinte, levando um pequeno cobertor e um lençol rendado para agasalhar o bebê, Jéssica foi para a casa de d. Gertrudes.

D. Benedita fez questão de acompanhá-la. Seu plano era pegar o bebê imediatamente após o parto e sair correndo com ele debaixo do braço para se encontrar com o comprador de bebês, com quem ela já havia combinado tudo. Ela também havia levado panos para envolver o bebê. 

O parto correu normal. O bebê nasceu, era menino. 

D. Benedita imediatamente olhou o bebê e saiu correndo da casa de d. Gertrudes.

Mas d. Benedita saiu correndo sem levar o bebê. Saiu sozinha com o olho arregalado como se Satanás tivesse entrado no seu corpo. 

D. Gertrudes envolveu o bebê nos panos que Jéssica trouxera. 

Pode levar o bebê para casa, disse d. Gertrudes.

Jéssica então olhou o filho. Não disse uma palavra. Pegou o bebê envolto no cobertor e no pequeno lençol de renda e saiu da casa de d. Gertrudes. 

Foi caminhando lentamente pela rua até que encontrou a primeira lata de lixo grande. Então jogou o bebê na lata de lixo. 

O bebê era aleijado. Só tinha um braço. Ela não ia dar de mamar nem ninguém ia querer comprar aquela coisa.


Rubem Fonseca
Amálgama
Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2013






CUENTOS
Los prisioneros (1963)
El collar del perro (1965) 
Lucía McCartney (1967)
El cobrador (1979)
Novela negra y otras historias (1992)
Historias de amor (1997)
La cofradía de los Espadas (1998)
Secreciones, excreciones y desatinos (2001)
Pequeñas criaturas (2002)
Ella y otras mujeres (2006)
Axilas y otras historias indecorosas (2011)

Os prisioneiros (1963) 
A coleira do cão (1965) 
Romance negro e outras histórias (1992) 
O buraco na parede (1995)
Rubem Fonseca / Cidade de Deus
Cofraia dos Espadas (1998)
Rubem Fonseca / O vendedor de seguros
Secreções, excreções e desatinos (2001)
Pequenas criaturas (2002)
Diário de um Fescenino (2003)
64 Contos de Rubem Fonseca 2004)
Ela e outras mulheres (2006)
Rubem Fonseca / Teresa
Axilas y otras historias indecorosas (2011)
Rubem Fonseca / O ensina da gramática

DRAGON

DANTE

RACCONTI

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