sexta-feira, 3 de abril de 2015

João Guimarães Rosa / Quatro contos de um parágrafo

João Guimarães Rosa
João Guimarães Rosa

Quatro contos de um parágrafo


1.Traição
Quando a música entrou pelos ouvidos de João, ele foi instantaneamente arremessado de volta no tempo. Por alguns segundos fechou os olhos e sentiu um aperto no coração. Foi como se despertasse e sentisse o corpo, de novo. E de quem se lembrou? Dela, de Maria, que foi sua namorada quando a música fazia sucesso. Lembrou da festa onde marcaram encontro e dançaram coladinhos, ao som dessa mesma canção. Não tinham compromissos; eram livres e jovens João e Maria, estavam apaixonados um pelo outro, e no fim da noite deram um longo beijo de capitulação. O amor era um conjunto de sensações físicas inenarráveis, e que desapareceram... Ao abrir os olhos, em silêncio, teve João a estranha sensação de que traia a esposa (ao seu lado) com Maria. Olhou para esta de soslaio, mais perplexo que envergonhado - até porque a esposa e Maria eram a mesma mulher, separada por uma década.

2. Pernas
A porta de seu escritório dava para o corredor que saia na sala, de onde podia enxergar frontalmente a televisão. Começaram lá a abordar um assunto de seu interesse, fazendo-o pausar a leitura dos contos “horrorosos” de Uma outra vida, de John Updike. Levantou-se e deu alguns passos em direção à sala, quando descortinou, por trás do sofá que se interpunha entre ele e o cômodo, duas pernas nuas e estendidas, escoradas num nível inferior da estante. Eram as pernas de Lídia, a esposa, que se acomodara no chão entre as almofadas. Do ângulo em que estava, já indiferente ao noticiário, ele as surpreendeu de ponta-cabeça, douradas pela luz amarela do ambiente. Parou e pôs-se a admirá-las sem que a mulher o percebesse, não podendo dela divisar o tronco e a cabeça, escondidos pelo móvel. Enxergava só o fantástico par de pernas, em tesoura, pousadas ali como uma borboleta. Por um instante julgou que contemplava as pernas mais bonitas do mundo. Parece até que elas o aguardavam, prontas para o amor, sucedendo-lhe um princípio de ereção. Não era uma fantasia que tivesse, mas a cena imprevista fê-lo imaginar um caso proibido, numa alcova de motel: eram pernas de Lívia...

3. O momento da criação
O escritor solitário finalmente conhecia o mar. Era uma manhã carregada, as nuvens ameaçavam precipitar. Mas a praia estava limpíssima e tudo o que ouvia, de muito distante, era apenas o compassado bater das ondas. Descalçou os pés e os colocou pela primeira vez na areia gelada e macia, que sensação! Avançou até aonde a água alcançava seu peito nu e tomou seu primeiro banho oceânico. Mergulhar, não quis. De retorno à praia, sentou-se, respirou fundo e admirou longamente a paisagem matinal. Estava entediado, apesar de tudo. Não tinha ninguém, o escritor. Fez uma concha com a mão e a enfiou na areia branca como se fosse um menino. Ergueu uma porção e lançou em direção à água que vinha e refluía desde a madrugada dos tempos. Notou em seguida que os dedos ficaram salpicados pelos pequenos grãos, que procurou limpar na vaga que retornava outra vez. Porém, tão minúsculos eram esses grãos que de todo não saíam da pele, pegajosos. Perlustrou um deles, insignificante, sobre seu imenso, descomunal polegar. Averiguou-o, sem mais o que fazer. Súbito, teve a inspiração! Ia escrever sua primeira história. Foi quando uma gota da tempestade que vinha caiu em seu rosto e ele prontamente recolheu as roupas e voltou para dentro. Ali, foi primeiro à torneira, lavou direito as mãos – tinha mania de assepsia - e pôs-se ao trabalho inebriante.

4.Anedota russa 
Mickael Vasiliev Boutachévitch-Petrachevski: era este o nome do conspirador-mor. Dizem que não era excepcionalmente capaz, mas fazia coisas indesejadas. Deixava-se, como Baltasar Bustos, influenciar por livros proibidos. As idéias da França escapavam pelos dedos e chegavam tanto na Argentina como na Rússia, onde um rei se incomodava, cheio de motivos. Numa daquelas sextas, o círculo de Petrachevski contou com a presença de um novo integrante, cujo nome não sabemos e não conviria celebrizar. Era o delator: que se perca. Os rebeldes foram todos descobertos, passando os próximos oito meses na prisão. Era improvável que fossem inocentados. O mais certo é que restavam duas possibilidades, ambas terríveis: serem enviados à Sibéria, onde praticariam trabalhos forçados, ou serem simplesmente fuzilados. A agonia tomou conta daqueles homens, amigos dos servos e inimigos da servidão. Após o trânsito do processo, conheceram finalmente a sentença: o infeliz Petrachevski e seus sequazes seriam mesmo mortos. Um frio ruim atravessou suas entranhas, ao receberem a notícia. Tal-e-qual os césares de Roma, os de São Petersburgo também ofereciam circo ao povo, de forma que os condenados foram conduzidos à Praça Semenóvski. Era um circo ameaçador, na verdade: o povo assistia ao espetáculo e voltava para casa com medo. O quarto condenado, confuso e desesperado, vê três de seus colegas serem amarrados ao poste de execução. Em seguida levam-no também, não há rufar de tambores nem toque de recolher armas - há apenas um estampido seco, uma carga fatal no coração. O genial Ordinov desaparece aos 30 anos de idade, parabéns ao rei pela merda que fez!




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