sexta-feira, 11 de abril de 2014

Marguerite Duras / Emily L.


Marguerite Duras
Emily L.

  
«Aquilo começara com o medo.
Tínhamos ido a Quillebeuf, como várias outras vezes nesse Verão.
Chegáramos à hora do costume, ao fim da tarde. Como de costume, tínhamos caminhado ao longo da amurada branca que bordeja os cais desde a igreja, à entrada do porto, até à saída dele, àquele caminho abandonado que devia conduzir até à floresta de Brotonne.
(...)



A eles, tínhamo-los visto no bar da marinha como víramos os clientes da sala, tal como a patroa e aquela rapariga a seu lado, isto durante um bom pedaço de tempo – eles já lá estavam quando entramos no café, nem podia ser outra coisa e depois bruscamente ter reparado neles. Devemos tê-los olhado sem os ver e depois tê-los visto de repente. Para depois não podermos deixar mais de o fazer.
Primeiro um a um. Depois o conjunto. Fundidos numa só cor, numa só forma? Numa só idade.
Tinham-se dirigido sozinhos para o lado do bar reservado aos clientes de passagem. Os fregueses habituais estavam do outro lado, perto do salão. Estavam sós. Estavam perdidos. Sós no Verão. Sós no deserto. Perdidos no meio da luz reflectida do rio para a praça, as paredes, as falésias de giz, com a porta dupla do bar escancarada para o exterior. Eles não viam nada, ninguém. Nem aquela luz de Verão. Nem aquele rio.
À frente têm as bebidas dos alcoólicos anglo-saxões: a cerveja Pilsen preta para ele e o duplo bourbon para ela. Içados nos tamboretes sem quase mexer, com a cabeça pendente, oscilante, eles também eram um tanto ridículos. Dir-se-iam plantas, coisas assim, intermediárias, espécies de vegetais, plantas humanas, apenas nascidas e já moribundas, apenas vivas e já mortas. Sim, coisas inocentes e punidas. Árvores. Árvores privadas de água e de terra, punidas. Condenadas a tombar como seres humanos, ali, a nossos olhos.
(...)


De onde vinha a fascinação, a graça, essa palavra do instante, do Verão, daquela gente? Impossível saber. Eu não sei. Sem dúvida daquela humildade perante a morte, de certo. Mas também daquela indecência. Daquele acontecimento. Do conjunto dessas coisas e de cada uma delas por si só. Sem que se pudesse dizer porquê nem como. Daquele rio também, daquela luz em que tudo banhava, daquela brancura das falésias brancas, esparsa por toda a aparte. Da brancura do giz. Das falésias e da espuma. Do azul esbranquiçado das aves marinhas. E também do vento.
(...)


Ela, a mulher do Captain. Ela olha para o chão. O seu corpo oculto tornou-se visível. É visível que é mortal. esse corpo, vestido de juventude, com os trapos usados dos jovens com, nos dedos, diamantes e o ouro dos papás de Devon. A morte está posta a nu sob o vestido, a epel sob os olhos também, sob o seu olhar de animal ferido e puro. (...)
A patroa não entra na sala. Fica ali, encostada ao balcão do bar, dir-se-ia que a descansar, a perder o olhar na direcção do rio, a da fossa profunda das águas azuis e negras.
(...)


Fora depois deste despertar que Emily L. ficara morta para ele durante mais de um ano. Tinha perdido a história. Tinha perdido os seus olhos, a sua voz, os olhos fechados contra a boca dele, os lábios dela nos seus, as mãos também, mas sobretudo os seus olhos fechados. Os olhos de Emily L. tinham ficado abertos e sem olhar durante meses e meses. E depois certa noite, ele acordara e a história voltara. Retomara o seu curso entre ela e ele, sem ser nenhum dos dois, agora tão frágil como a carta de Emily L. e, como ela, mais forte do que a morte. (...)
Dissemos que nesse ano o Verão seria resplandecente.
Todas as águas estavam calmas, tanto as do rio como as do mar. As águas doces, normalmente, eram retardadas na sua descida para o mar por aquilo a que eu chamava os grandes cabos lisos da rebentação que, de uma margem à outra, impediam o acesso ao mar. Nessa noite, não. A perder de vista, o rio penetrava nas águas do mar. Dir-se-ia que os movimentos das águas eram levados pelo sono. Não havia dúvida, não nos enganáramos, era ainda dia. Aquela claridade no céu vinha ainda do sol, não era a da noite. A noite que se aproximava seria a de um começo de Verão. Ainda fresca na aurora. Estávamos em Junho.
(...)


 seu corpo e o meu ficaram no mesmo lugar, fechados. O seu sono vinha sempre antes do meu, você dormia bem, o que sempre me tranquilizava, porque a noite o conduzia para o esquecimento daquela existência que levava comigo e que você desejava abandonar. (...)»


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