terça-feira, 1 de abril de 2014

Guy de Maupassant / O colar



Guy de Maupassant
O COLAR



Era uma dessas lindas e encantadoras jovens, nascidas, como por um erro do destino, numa família de empregados. Não tinha dote, nem espe­ranças, nenhum meio do ser conhecida, compreendida, amada, desposada por um homem rico e distinto; e acabou se casando com um simples escri­turário do Ministério da Instrução Pública.
Não podendo entregar-se ao luxo, foi simples; mas infeliz como uma desclassificada, pois as mulheres não têm casta nem raça, servindo-lhes a beleza, a graça e o encanto de nascimento e de família. A fineza nativa, o      instinto de elegância, a flexibilidade de espírito são-lhes a única hierar­quia e tornam as filhas do povo iguais às maiores damas.
Ela sofria continuamente, sentindo-se nascida para todas as delicadezas e todos os luxos. Sofria com a pobreza de seus aposentos, com a miséria das paredes, com a deterioração de cadeiras, com a fealdade das decorações. Todas essas coisas, de que uma outra mulher de sua casta não teria tomado conhecimento, a torturavam e a indignavam. A vista da pequena bretã que a servia em seu lar humilde despertava nela desolados queixumes e sonhos desatinados. Imaginava as antecâmaras mudas forradas de tapeçarias orientais, iluminadas por altos candelabros de bronze e com dois grandes criados de calças curtas que dormem nas grandes poltronas, narcotizados pelo calor incômodo da lareira. Imaginava grandes salões guarnecidos de seda antiga, de móveis finos encerrando bibelôs inestimáveis e pequenos salões galantes, perfumados, o chá das cinco, com os amigos mais íntimos, as homens conhecidos e procurados, cuja atenção todas as mulheres invejam e desejem!   
Quando ela se sentava, diante da mesa redonda coberta com uma toalha de três dias, em face do marido que destampava a terrina declarando num ar encantado: “Ah! o cozido gostoso! não conheço nada melhor do que isso...” , ela imaginava jantares finos, pratarias reluzentes, tapeçarias povoando as paredes de personagens antigos e pássaros estranhos no meio de uma floresta de magia; imaginava pratos esquisitos, servidos em baixelas maravilhosas, galantarias sussurradas e ouvidas com um sorriso de esfinge, ao comer a carne rosada de uma truta, uma asa de perdiz.
Não tinha toaletes, jóias, nada. E não amava senão isso; sentia-se feita para isso. E tanto desejaria agradar, ser invejada, ser sedutora e procurada!
Tinha uma amiga rica, uma camarada de colégio que não queria ir ver mais, tanto sofria ao regressar. E chorava durante dias inteiros, de pesar, de dor, de desespero e de angústia.
Ora, uma tarde, o marido entrou em casa com um ar vitorioso, segu­rando na mão um grande envelope.
— Olhe, disse ele, aqui está alguma coisa para você!
Ela rasgou vivamente o papel e leu um cartão impresso que trazia as seguintes palavras:
“O Ministro da Instrução Pública e a Sra. Georges Ramponneau têm a honra de convidar o Sr. e a Sra. Loisel para o baile no Palácio do Ministério, a realizar-se segunda-feira, 18 de janeiro”.
Em lugar de ficar encantada, como esperava o marido, ela lançou com despeito o convite sobre a mesa, murmurando:
— Que quer que eu faça com isso?
— Mas, querida, pensei que ficasse contente. Você nunca sai e aí está uma oportunidade, uma bela oportunidade! Custou-me muito para obtê-lo. Todo mundo queria; são muito disputados esses convites e os funcionários quase não os recebem. Verá todo o mundo oficial.
Ela o olhava irritada, declarando com impaciência:
    Que vestido quer que eu vista para ir lá?
Ele não tinha pensado nisso; balbuciou:
— Mas, o vestido com que vai ao teatro! Parece-me bem, a mim...
Calou-se estupefato, desatinado, vendo que sua mulher chorava. Duas grossas lágrimas desciam lentamente dos cantos dos olhos para os cantos da boca; ele gaguejou:
— Que é que você tem? que é que tem?
Mas, por um esforço violento, ela dominara a sua aflição e respondeu numa voz calma, enxugando as faces úmidas:
— Nada. Somente não tenho toalete e por conseguinte não posso ir a essa festa. Dê seu convite a algum colega cuja mulher esteja melhor provida de roupa do que eu.
Ele estava desolado. Falou-lhe:
— Vejamos, Matilde. Quanto custaria uma toalete conveniente, que pudesse servir em outras ocasiões, alguma coisa de bem simples?
Ela refletiu alguns segundos, fazendo as contas e pensando também na soma que poderia pedir sem provocar uma recusa imediata e uma exclamação de espanto no econômico funcionário.
Enfim, respondeu hesitando:
— Não sei ao certo, mas me parece que com quatrocentos francos eu conseguiria.
Ele empalidecera um pouco, pois reservara justamente essa soma para comprar uma carabina e participar de caçadas, no verão seguinte, no Vale de Nanterre, com alguns amigos que iam, ali, aos domingos, alvejar as calhandras.
Entretanto, disse:
— Pois seja. Dou os quatrocentos francos. Mas trate de arranjar um lindo vestido.

* * *

O dia da festa se aproximava, e a Sra. Loisel parecia triste, inquieta, ansiosa. Sua toalete, no entanto, estava pronta. O marido lhe disse, uma tarde:
— Que é que você tem? Está esquisita há uns três dias.
E ela respondeu:
— Não ter nenhuma jóia, nenhuma pedra, nada para pôr sobre mim é que me aborrece. Sempre parecerei uma miserável. Acharia melhor não ir a essa festa.
Ele prosseguiu:
— Arranje umas flores naturais. É muito elegante nesta estação. Por dez francos você terá duas ou três rosas magníficas.
Ela não se convenceu.
Não... não há nada mais humilhante do que parecer pobre no meio de mulheres ricas.
Mas o marido exclamou:
— Como você é tola! Vá procurar sua amiga a Sra. Forestier e peça--lhe emprestado algumas jóias. Você tem intimidade suficiente com ela para fazer isso.
Ela soltou um grito de alegria.
— É verdade! Nem tinha pensado.
No dia seguinte, foi à casa da amiga e lhe expôs sua dificuldade.
A Sra. Forestier foi ao armário de espelho, dele tirou um grande estojo, abriu-o e disse à Sra. Loisel:
Escolha, querida.
Ela viu primeiro uns braceletes, depois um colar de pérolas, depois uma cruz veneziana, ouro e pedrarias, de um trabalho admirável. Experimentava as jóias diante do espelho, hesitava, não podia decidir-se a deixá-las, a devolvê-las. Perguntava sempre:
— Você não tem mais nada?
— Tenho, sim. Procure. Não sei o que lhe pode agradar.
De repente, ela descobriu, numa caixa de cetim negro, um soberbo colar de diamantes; e o coração se lhe pôs a bater num imoderado desejo. As mãos tremiam ao segurá-lo. Atou-o em volta do pescoço, por cima do vestido fechado e permaneceu em êxtase diante de si mesma.
Depois, perguntou, hesitante, cheia de angústia:
— Pode emprestar-me este, somente este?
— Mas claro que sim, certamente!
Ela saltou ao pescoço da amiga, beijou-a com arrebatamento, depois fugiu com o seu tesouro.
O dia da festa chegou. A Sra. Loisel brilhou. Estava mais linda do que todas, elegante, graciosa, sorridente e louca de alegria. Todos os homens a olhavam, perguntavam-lhe o nome, procuravam ser apresentados. Todos os adidos do gabinete queriam dançar com ela. O ministro notou-a.
Ela dançava com embriaguez, com arrebatamento, embriagada pelo prazer, sem pensar mais em nada, no triunfo régio de sua beleza, na glória de seu êxito, numa espécie de nuvem de felicidade feita de todas aquelas homenagens, de todas aquelas admirações, de todos aqueles desejos desper­tados, daquela vitória tão completa e tão grata ao coração dos mulheres.
Saiu pelas quatro da manhã. O marido, desde a meia-noite dormia numa saleta deserta com três ou quatro senhores cujas mulheres se divertiam muito.
Lançou-lhe sobre os ombros as vestes que trouxera para a saída, modestas vestes da vida cotidiana, cuja pobreza contrastava com a elegância da toalete de baile. Ela o percebeu e quis fugir, para não ser observada pelas outras mulheres que se abrigavam em ricas peles.
Loisel a retinha:
— Espere um pouco. Vai resfriar-se lá fora. Vou chamar um fiacre.
Ela não o ouvia, porém, e descia rapidamente a escadaria. Quando chegaram à rua, não encontraram carro; e puseram-se a procurar, chamando os cocheiros que viam passar de longe.
Desciam rumo ao Sena, desesperados, tiritantes. Enfim, encontraram no cais um desses velhos cupês noctâmbulos que só se avistam em Paris ao cair da noite, como se ficassem envergonhados de sua miséria durante o dia.
O carro os conduziu até a porta de casa, à Rua dos Mártires, e, tristemente, subiram aos seus aposentos. Estava acabado para ela. E ele pensava que tinha de estar no Ministério às dez horas.
Ela tirou as vestes com que cobrira os ombros, diante do espelho, a fim de se ver ainda uma vez na sua glória. Mas de repente soltou um grito. Não tinha mais o colar em volta do pescoço.
O marido, meio despido já, perguntou:
— Que foi?
Ela voltou-se, desvairada:
— Não... não... não... tenho mais o colar da Sra. Forestier!
Ele se ergueu, desorientado:
— Quê!... Como!... Não é possível!
E procuraram nas dobras do vestido, nas pregas do casaco, nos bolsos, por toda parte. Não o encontraram.
Ele perguntava:
— Está segura de que ainda o tinha ao deixar o baile?
— Sim, toquei nele no vestíbulo do Ministério.
— Mas, se o perdesse na rua, nós o ouviríamos cair. Deve estar no fiacres.
— Sim. É provável. Tomou-lhe o número?
— Não. E você, não reparou?
— Não.
Aterrados, eles se contemplavam. Enfim, Loisel tornou a se vestir.
— Vou — disse ele — refazer todo o trajeto que fizemos a pé, para ver se o encontro.
E saiu. Ela ficou de toalete de baile, sem forças para deitar, abatida numa cadeira, sem coragem, sem pensamento.
O marido voltou pelas sete. Não encontrara nada.
Foi à chefatura de polícia, aos jornais, para fazer promessa de uma recompensa, às pequenas companhias de transportes, a toda parte, enfim, aonde uma suspeita de esperança o levasse.
Ela esperou o dia inteiro, no mesmo estado de terror, diante daquele medonho desastre.
Loisel voltou à noite, com o rosto cavado, pálido; não tinha descoberto nada.
— É preciso — disse ele — escrever a sua amiga. Diga que quebrou o fecho da calar e que o mandou reparar. Isso nos dará tempo para nos mexer.
Ela escreveu sob seu ditado.
Ao cabo de uma semana, tinham perdido toda esperança.
E Loiel, envelhecido cinco anos, declarou:
— É preciso tratar de substituir o colar.
Tomaram, no dia seguinte, o estojo que o tinha encerrado e foram ao joalheiro, cujo nome estava inscrito dentro. Ele consultou os seus livros:
— Não fui eu, senhora, quem vendeu esse colar; devo ter fornecido somente o estojo.
Foram, então, de joalheira em joalheiro para encontrar um colar igual àquele, consultando as suas lembranças, doentes ambos de pesar e de angústia.
Encontraram, numa loja do Falais Royal, um colar que lhes pareceu inteiramente semelhante ao que procuravam. Valia quarenta mil francos. Deixá-lo-iam por trinta e seis mil.
Pediram então ao joalheiro que o não vendesse antes de três dias. E ficou convencionado que o devolveriam por trinta e quatro mil francos, se o primeiro fosse encontrado antes do fim de fevereiro.
Loisel possuía dezoito mil francos que lhe tinha deixado o pai. Pediria emprestado o resto.
Assim fez, pedindo mil francos a um, quinhentos a outro, cinco luíses aqui, três luíses acolá. Assinou letras, assumiu compromissos ruinosos, teve negócios com os agiotas, com todas as raças de emprestadores. Com­prometeu todo o fim da sua existência, arriscou sua assinatura sem saber se poderia garanti-la e, atemorizado com as angustias do futuro, com a negra miséria que se ia abater sobre ele, com a perspectiva de todas as privações físicas e todas as torturas morais, foi procurar o novo colar, depondo sobre o balcão do negociante trinta e seis mil francos.
Quando a Sra. Loisel levou o colar à Sra. Forestier, esta lhe disse, num ar irritado:
— Você devia tê-la trazido mais cedo, pois eu poderia ter precisado dele!
Não abriu o estojo, que era o que temia a amiga. Se percebesse a substituição, que pensaria ela? Que diria? Não a tomaria por uma ladra?
A Sra. Loisel conheceu a vida horrível dos necessitados. Aceitou o destino, aliás, de chofre, heroicamente. Era preciso pagar aquela dívida terrível. Ela pagaria. Despediram a empregada; mudaram de aposentos; alugaram uma mansarda.
Conheceu os trabalhos grosseiros do lar, as odiosas necessidades da cozinha. Lavou pratos, gastando as unhas rosadas sobre a louça gordurenta e o fundo das caçarolas. Ensaboou a roupa suja, as camisas e os panos de cozinha, que fazia secar numa corda; todas as manhãs carregou o lixo para a rua e subiu a água, parando em cada andar para tomar fôlego. E, vestida como uma mulher do povo, foi ao quitandeiro, ao vendeiro, ao padeiro, a cesta sob o braço, regateando, recebendo injúrias, defendendo soldo a soldo o seu miserável dinheiro.
Era preciso resgatar letras a cada mês, renovar outras, arranjar tempo.
O marido trabalhava à tarde, para pôr em dia as contas de um comerciante e à noite, muitas vezes, fazia cópia a cinco soldos a página.
E essa vida durou dez anos.
Ao cabo de dez anos, tinham saldado tudo, tudo, com a taxa da usura e o acúmulo dos juros.
A Sra. Loisel parecia velha, agora. Tornara-se a mulher forte, dura, rude, dos lares pobres. Mal penteada, com a saia de viés e as mãos verme­lhas, falava alto, lavava os soalhos com abundância de água. Mas às vezes, quando o marido estava na repartição, sentava-se junto à janela e pensava naquela festa de outrora, naquele baile em que fora tão bela e festejada.
Que teria acontecido se não tivesse perdido aquele colar? Quem sabe. . . quem sabe? Como a vida é singular, mutável! Como é preciso pouca coisa para nos perder ou salvar!
Ora, um domingo, ao dar uma volta nos Campos Elísios, para repousar dos trabalhos da semana, percebeu de repente uma mulher que passeava com um menino. Era a Sra. Forestier, sempre jovem, sempre bela, sempre sedutora. A Sra. Loisel se sentiu emocionada. Falar-lhe-ia? Sim, certamente. E agora que tinha pago lhe diria tudo. Por que não?
Aproximou-se.
— Bom dia, Jeanne.
A outra não a reconhecia, assustando-se de ser assim chamada familiar­mente por aquela burguesa. Balbuciou:
    Mas... senhora!... Não sei... Deve estar enganada.
    Não. Sou Matilde Loisel.
Sua amiga soltou um grito:
Oh!... minha pobre Matilde, como está mudada!...
Sim, tenho tido dias bastante duros, desde que deixei de vê-la e muita miséria... e isso por sua causa!
— Por minha causa... Como assim?
— Lembra-se daquele colar de diamantes que me emprestou para ir à festa do Ministério?
— Sim. E daí?
— Pois bem. Eu o perdi.
— Como! se me devolveu!
— Eu lhe devolvi um outro igual. E levamos dez anos para pagá-lo. Compreende que não era fácil para nós, que não tínhamos nada... Enfim, está acabado e eu me sinto rudemente contente.
A Sra. Forestier ficara parada.
— Você diz que comprou um colar do diamantes para substituir o meu?
— Sim. Não percebeu, hein? Eram bem iguais.
E ela sorria com uma alegria orgulhosa e ingênua.
A Sra. Forestier, muito comovida, tomara-lhe as duas mãos.
— Oh! minha pobre Matilde! Mas o meu era falso! Valia, quanto muito quinhentos francos!...

1884.


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