quarta-feira, 30 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Assombrações de Agosto

Portrait of A Lady
Rogier van der Weyden
Gabriel García Márquez
Assombrações de Agosto



ESPANTOS DE AGOSTO
GHOSTS OF AUGUST

Chegamos a Arezzo pouco antes do meio-dia, e perdemos mais de duas horas buscando o castelo renascentista que o escritor venezuelano Miguel Otero Silva havia comprado naquele rincão idílico da planície toscana. Era um domingo de princípios de agosto, ardente e buliçoso, e não era fácil encontrar alguém que soubesse alguma coisa nas ruas abarrotadas de turistas. Após muitas tentativas inúteis voltamos ao automóvel, abandonamos a cidade por uma trilha de ciprestes sem indicações viárias, e uma velha pastora de gansos indicou-nos com precisão onde estava o castelo. Antes de se despedir, perguntou-nos se pensávamos dormir por lá, e respondemos, pois era o que tínhamos planejado, que só íamos almoçar.
- Ainda bem – disse ela -, porque a casa é assombrada.

terça-feira, 29 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Dezessete ingleses envenenados


Gabriel García Márquez
DEZESSETE INGLESES ENVENENADOS



A primeira coisa que a senhora Prudencia Linero notou quando chegou ao porto de Nápoles foi que tinha o mesmo cheiro do porto de Riohacha. Não contou a ninguém, é claro, pois ninguém teria entendido naquele transatlântico senil abarrotado de italianos de Buenos Aires que voltavam à pátria pela primeira vez depois da guerra, mas de todo modo sentiu-se menos só, menos assustada e distante, aos 72 anos de sua idade e a dezoito dias de mar ruim de sua gente e de sua casa.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Tramontana



Gabriel García Márquez

Vi o rapaz uma única vez no Boccacio, o cabaré da moda em Barcelona, poucas horas antes de sua morte ruim. Estava acossado por uma quadrilha de jovens suecos que tentavam levá-lo às duas da madrugada para terminar a festa em Cadaqués. Eram onze, e dava trabalho distingui-los, porque os homens e as mulheres pareciam iguais: belos, de cadeiras estreitas e longas cabeleiras douradas. Ele não devia ter mais do que vinte anos. Tinha a cabeça coberta de cachos engordurados, a cútis melancólica e polida dos caribenhos acostumados por suas mães a caminhar pela sombra, e um olhar árabe capaz de transtornar as suecas, e talvez vários suecos. Haviam-no colocado sentado no balcão como um boneco de ventríloquo, e cantavam para ele canções da moda acompanhadas de palmas, para convencê-lo a ir com eles. Ele, aterrorizado, explicava seus motivos. Alguém interveio aos gritos para exigir que o deixassem em paz, e um dos suecos enfrentou-o morrendo de rir.
- É nosso – gritou. – Nós o encontramos na lata de lixo.

domingo, 27 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / O Verão Feliz da Senhora Forbes


Gabriel García Márquez 
O Verão Feliz da Senhora Forbes



De tarde, de regresso à casa, encontramos uma enorme serpente-do-mar pregada pelo pescoço no batente da porta, e era negra e fosforescente e parecia um malefício de ciganos, com os olhos ainda vivos e os dentes de serrote nas mandíbulas escancaradas.
Eu andava, na época, com uns nove anos, e senti um terror tão intenso diante daquela aparição de delírio que fiquei sem voz. Mas meu irmão, que era dois anos menor que eu, soltou os tanques de oxigênio, as máscaras e as nadadeiras e saiu fugindo com um grito de espanto. A senhora Forbes ouviu-o da tortuosa escada de pedras que trepava pelos recifes do embarcadouro até a casa e nos alcançou, arquejante e lívida, mas bastou que visse o animal crucificado na porta para compreender a causa do nosso horror. Ela costumava dizer que quando duas crianças estão juntas, ambas são culpadas do que cada uma fizer sozinha, de maneira que repreendeu a nós dois pelos gritos de meu irmão, e continuou recriminando nossa falta de domínio. Falou em alemão, e não em inglês, como estava estabelecido em seu contrato de preceptora, talvez porque ela também estivesse assustada e se negasse a admitir. Mas assim que recobrou o fôlego voltou ao seu inglês pedregoso e à sua obsessão pedagógica.
- É uma Moréia helena – nos disse -, assim chamada porque foi um animal sagrado para os gregos antigos.

sábado, 26 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Só Vim Telefonar


Gabriel García Márquez
Só Vim Telefonar




Numa tarde de chuvas primaveris, quando viajava sozinha para Barcelona dirigindo um automóvel alugado, Maria de la Luz Cervantes sofreu uma pane no deserto dos Monegros. Era uma mexicana de 27 anos, bonita e séria, que anos antes tivera certo nome como atriz de variedades. Estava casada com um prestidigitador de salão, com quem ia se reunir naquele dia após visitar alguns parentes em Saragoça. Depois de uma hora de sinais desesperados aos automóveis e caminhões que passavam direto pela tormenta, o chofer de um ônibus destrambelhado compadeceu-se dela. Mas avisou que não ia muito longe.
- Não importa – disse Maria. – Eu só preciso de um telefone.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / A santa

Albert Anker
Gabriel García Márquez
A SANTA
Vinte e dois anos depois, tornei a ver Margarito Duarte. Apareceu de repente numa das ruazinhas secretas do Trastevere, e tive trabalho em reconhecê-lo à primeira vista por seu castelhano difícil e seu jeito ameno de romano antigo. Tinha o cabelo branco e escasso, e não restavam nele rastros da conduta lúgubre e das roupas funerárias de advogado andino com que havia vindo a Roma pela primeira vez, mas no curso da conversa fui resgatando-o pouco a pouco das perfídias dos anos e tornei a vê-lo como era: sigiloso, imprevisível, e de uma tenacidade de quebrador de pedra. Antes da segunda xícara de café num dos nossos bares de outros tempos, me atrevi a fazer-lhe a pergunta que me carcomia por dentro.

quinta-feira, 24 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Me alugo para sonhar


Gabriel García Márquez

Às nove, enquanto tomávamos o café da manhã no terraço do Habana Riviera, um tremendo golpe de mar em pleno sol levantou vários automóveis que passavam pela avenida à beira-mar, ou que estavam estacionados na calçada, e um deles ficou incrustado num flanco do hotel. Foi como uma explosão de dinamite que semeou pânico nos vinte andares do edifício e fez virar pó a vidraça do vestíbulo. Os numerosos turistas que se encontravam na sala de espera foram lançados pelos ares junto com os móveis, e alguns ficaram feridos pelo granizo de vidro. Deve ter sido uma vassourada colossal do mar, pois entre a muralha da avenida à beira-mar e o hotel há uma ampla avenida de ida e volta, de maneira que a onda saltou por cima dela e ainda teve força suficiente para esmigalhar a vidraça.

quarta-feira, 23 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / A luz é como a água


A luz é como a água

No Natal os meninos tornaram a pedir um barco a remos.
— De acordo — disse o pai —, vamos comprá-lo quando voltarmos a Cartagena.
Totó, de nove anos, e Joel, de sete, estavam mais decididos do que seus pais achavam.
— Não — disseram em coro. — Precisamos dele agora e aqui.
— Para começar — disse a mãe —, aqui não há outras águas navegáveis além da que sai do chuveiro.

terça-feira, 22 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / O avião da bela adormecida

Sleeping Nude, 1950
Lucian Freud
Private Colletion, Canada
Gabriel García Márquez
O avião da bela adormecida



Era ela, elástica, com uma pele suave da cor do pão e olhos de amêndoas verdes, e tinha o cabelo liso e negro e longo até as costas, e uma aura de antiguidade que tanto podia ser da Indonésia como dos Andes. Estava vestida com um gosto sutil: jaqueta de lince, blusa de seda natural com flores muito tênues, calças de linho cru, e uns sapatos rasos da cor das buganvílias. "Esta é a mulher mais bela que vi na vida", pensei, quando a vi passar com seus sigilosos passos de leoa, enquanto eu fazia fila para abordar o avião para Nova York no aeroporto Charles de Gaulle de Paris. Foi uma aparição sobrenatural que existiu um só instante e desapareceu na multidão do saguão.

segunda-feira, 21 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Mais cem anos de solidão



Gabriel García Márquez

Mais cem anos de solidão


"Leia esse escritor, é simplesmente genial"

A chuva que caía interminável naquela pequena aldeia dos confins da Colômbia encharcava meus pés adolescentes

José Santos, um dos grandes nomes da literatura infantil da atualidade, era líder estudantil em Juiz de Fora, interior de Minas Gerais, no final da década de 1970. Cursava a faculdade de comunicação na universidade federal e encabeçava um grupo de jovens reunidos em torno do Varal de Poesia, que acontecia quinzenalmente aos sábados no calçadão da Rua Halfeld, e do folheto Abre-Alas, espécie de antologia, publicada em off set e ilustrada por desenhos dos novos artistas plásticos da cidade, que trazia o melhor da produção poética contemporânea do Brasil.
Eu o conheci durante uma greve. Escalaram-me para conclamar os alunos reticentes a aderir a uma paralisação destinada a impedir o aumento do preço do bandejão – a comida servida no Restaurante Universitário -, pretexto para sairmos às ruas numa demonstração de força contra a ditadura militar. Quando subia as escadarias do Instituto de Ciências Humanas e Letras, encontrei José. Disse a ele, rapidamente, que era de Cataguases, cidade onde, sabia, ele havia morado, e, simpático, me convocou para participar de uma das reuniões de estudo que realizavam-se em sua casa.
Demorou alguns dias ainda para que eu o reencontrasse e ele reiterasse o convite. Apareci lá uma noite. José me recebeu com alegria e conduziu-me a um quarto apertado, onde um bando de rapazes e moças em torno dos vinte anos discutia uma passagem obscura de Os conceitos elementares do materialismo histórico, da socióloga chilena Marta Harnecker. Sobre a mesa, uma enorme bacia cheia de pipocas, duas garrafas grandes de guaraná e vários copos de vidro usados. Após as apresentações, encostei-me a um canto, deslocado.
Como retomassem a discussão, deixei meus olhos passearem pelas estantes abarrotadas. Pegava ao acaso um volume, folheava-o, devolvia-o. A curiosidade de José não compreendia limites, enredada em teses de política, em conceitos sociológicos, em pensamentos filosóficos, em considerações literárias, em reflexões poéticas, em biografias, história, ficção. Esgotada a pauta daquela sessão, os interesses se dispersaram. Alguém colocou um disco de Mercedes Sosa na vitrola, outro acendeu um cigarro, outro ainda se despediu, tinha prova na manhã seguinte.
José então aproximou-se e perguntou se algo havia me chamado a atenção no caos daquelas obras enfileiradas. Sorri, tímido, e, antes que respondesse, ele, retirando dois livros de uma pilha, me entregou, dizendo, "Leia esse escritor, é simplesmente genial". Mirei os estranhos títulos, Os funerais da Mamãe Grande e Olhos de cão azul, observei o nome do autor, Gabriel García Márquez, enfiei-os sob o braço e calado saí para a noite de perfumes adocicados.
Assim que deixei o prédio, abri ao acaso um dos volumes, justo na página em que se iniciava o conto Monólogo de Isabel vendo chover em Macondo. As primeiras palavras reveladas seqüestraram meu espírito e meu corpo caminhou sonâmbulo negaceando de postes, buracos e pessoas, buscando os coágulos de luz que, rompendo a copa das árvores, drapejavam a calçada mal conservada da avenida Rio Branco. A chuva que caía interminável naquela pequena aldeia dos confins da Colômbia encharcava meus pés adolescentes.
No silêncio da casa, transformada em república, assentada no número 420 da rua Moraes Sarmento, todos dormiam. Todos, menos eu. Lido o último conto de Os funerais da Mamãe Grande, percebi, exausto, que as sombras projetadas na parede desenhavam rostos de pessoas amadas que, pouco a pouco, iriam se diluir na memória. Então, os barulhos vindos de fora penetraram por debaixo da porta inaugurando a manhã, passos, vozes, a agitação dos passarinhos, o ônibus que subia lotado de estudantes para a Cidade Alta e descia abarrotado de trabalhadores para a Cidade Baixa. Eu já acumulava 18 anos de uma irremediável melancolia. E agora, debruçado à mesa, compreendia que, sem uma segunda chance sobre a terra, restavam para mim ainda mais cem anos de solidão...




domingo, 20 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / O rastro do teu sangue na neve


Gabriel García Márquez
O RASTRO DO TEU SANGUE NA NEVE

|


Ao anoitecer, quando chegaram à fronteira, Nena Daconte notou que o dedo com a aliança de casamento continuava sangrando. O guarda-civil com a manta de lã sobre o chapéu de três pontas e verniz-charão examinou os passaportes à luz de uma lanterna de carbureto, fazendo um grande esforço para não ser derrubado pela pressão do vento que soprava dos Pireneus. Embora fossem dois passaportes diplomáticos em regra, o guarda levantou a lanterna para comprovar que os retratos se pareciam às caras. 
Nena Daconte era quase uma menina, com uns olhos de pássaro feliz e uma pele de melaço que ainda irradiava o sol do Caribe no lúgubre anoitecer de janeiro, e estava agasalhada até o pescoço com um abrigo de nucas de visom que não poderia ser comprado com o salário de um ano da guarnição inteira da fronteira. Billy Sánchez de Ávila, seu marido, que dirigia o automóvel, era um ano mais jovem que ela, quase tão belo, e usava um paletó escocês e um boné de jogador de beisebol. Ao contrário de sua esposa, era alto e atlético e tinha as mandíbulas de ferro dos valentões tímidos. Mas o que revelava melhor a condição de ambos era o automóvel platinado cujo interior exalava um hálito de animal vivo, como não se havia visto outro por aquela fronteira de pobres. Os assentos traseiros iam atopetados de maletas demasiado novas e muitas caixas de presentes que ainda não tinham sido abertas. Lá estavam, além disso, o sax-tenor que tinha sido a paixão dominante de Nena Daconte antes que sucumbisse ao amor contrariado de seu doce bandoleiro de balneário.

sábado, 19 de abril de 2014

Vargas Llosa / Sair da barbárie


Mario Vargas Llosa

Sair da barbárie

O Peru tem a oportunidade de superar a homofobia aprovando o projeto de Lei da União Civil do congressista Carlos Bruce. Contra isso está o obscurantismo agressivo da hierarquia eclesiástica


19 de abril de 2014

O Peru tem nestes dias uma oportunidade para dar mais um passo no caminho da cultura da liberdade, deixando para trás uma das formas mais difundidas e praticadas de barbárie, que é a homofobia, ou seja, o ódio aos homossexuais. O congressista Carlos Bruce apresentou um projeto de lei de União Civil entre pessoas do mesmo sexo, que conta com o apoio do Ministério da Justiça, da Defensoria Pública, das Nações Unidas e da Anistia Internacional. Os principais partidos políticos representados no Congresso, tanto de direita como de esquerda, parecem favoráveis à iniciativa, de forma que a lei tem muitas possibilidades de ser aprovada.
Desse modo, o Peru seria o sexto país latino-americano e o 61º no mundo a reconhecer legalmente o direito dos homossexuais de viverem como casal, constituindo uma instituição civil equivalente (embora não idêntica) ao casamento. Se der esse passo, tão importante como ter finalmente se livrado da ditadura e do terrorismo, o Peru começará a reparar muitos milhões de peruanos que, ao longo da sua história, por serem homossexuais, foram escarnecidos e vilipendiados até extremos indescritíveis, presos, destituídos dos seus direitos mais elementares, expulsos de seus trabalhos, submetidos à discriminação e ao assédio na vida profissional e privada e apresentados como anormais e degenerados.
Nesse exato momento, no previsível debate que esse projeto de lei provocou, a Conferência Episcopal Peruana, em comunicado da época das cavernas e de uma ignorância crassa, afirma que o homossexualismo “contraria a ordem natural”, “atenta contra a dignidade humana” e “ameaça a orientação saudável das crianças”. O inefável arcebispo primaz de Lima, o cardeal Cipriani, por sua vez, pediu que se faça um referendum nacional sobre a União Civil. Muitos nos perguntamos por que não pediu essa consulta popular quando o regime ditatorial de Fujimori, com o qual foi tão compreensivo, mandou esterilizar manu militari e com pérfidas mentiras milhares de camponesas (fazendo-as acreditar que iriam vaciná-las), muitas das quais morreram de hemorragia causada por essa criminosa operação.


O fanatismo religioso e o machismo causam atropelos e sofrimentos a muitos cidadãos

Há alguns anos, temo, uma iniciativa como a do congressista Carlos Bruce (que, diga-se de passagem, acaba de ser ameaçado de morte por um fanático) teria sido impossível, pela férrea influência que o setor mais troglodita da igreja católica exercia sobre a opinião pública em questões sexuais, e, embora a prática do homossexualismo fosse a opção exercida por um segmento considerável da sociedade, esse exercício era arriscado, clandestino e vergonhoso porque quem se atrevia a reivindicá-lo à luz do dia era objeto de instantâneo linchamento público. As coisas mudaram para melhor desde então, embora ainda reste muita erva daninha por arrancar. Vejo no atual debate que intelectuais, jornalistas, artistas, profissionais, dirigentes políticos e sindicais, ONGs, instituições e organizações católicas de base se pronunciam com mediana clareza contra explosões homofóbicas, como as da Conferência Episcopal e as de algumas das seitas evangélicas que estão na mesma linha ultraconservadora; e lembram que o Peru é constitucionalmente um país laico, onde todos têm os mesmos direitos. E que, entre os direitos de que gozam os cidadãos em um país democrático, figura o de optar livremente por sua identidade sexual.
As opções sexuais são diferentes, mas não normais e anormais segundo se seja gay, lésbica ou heterossexual. E por isso gays, lésbicas e heterossexuais devem gozar dos mesmos direitos e obrigações, sem serem perseguidos e discriminados por isso. Acreditar que o normal é ser heterossexual e que os homossexuais são “anormais” é uma crença preconceituosa, desmentida pela ciência e pelo sentido comum; e que só orienta a legislação discriminatória em países atrasados e incultos, onde o fanatismo religioso e o machismo são fonte de atropelos e da desgraça e sofrimento de inúmeros cidadãos cujo único delito é pertencer a uma minoria. A perseguição ao homossexual predicada por aqueles que difundem sandices irracionais, como a “anomalia” homossexual, é tão cruel e desumana como a do racismo nazista ou branco que considera os judeus, os negros e os amarelos seres inferiores por serem diferentes.
A união civil é, está claro, apenas um passo adiante para ressarcir as minorias sexuais da discriminação e da perseguição da qual foram e continuam sendo objeto. Mas será mais fácil combater o preconceito e a ignorância que sustentam a homofobia quando os cidadãos comuns puderem ver que os casais homossexuais que constituem uniões civis estabelecidas pelo amor recíproco não alteram em nada a vida comum e cotidiana dos outros, como ocorreu em todos (todos sem exceção) os países que autorizaram as uniões civis ou os casamentos entre casais do mesmo sexo. Onde se realizaram as apocalípticas profecias de que, se se permitem casais homossexuais, a degeneração sexual se espalhará por todas as partes? Ao contrário, a liberdade sexual, como a liberdade política e a liberdade cultural, garante essa paz que só resulta da convivência pacífica entre ideias, valores e costumes diversos. Não há nada que exacerbe tanto a vida sexual, chegando a desviá-la até extremos às vezes vertiginosos, como a repressão e a negação do sexo. Sacudida está pelos casos de pedofilia que a afetaram em quase todo o mundo, a igreja católica deveria compreender isso melhor que ninguém e atuar de forma consequente frente a esse assunto, ou seja, de forma mais moderna e tolerante.


A liberdade sexual, como a política e a cultural, garante a convivência pacífica entre ideias

Eu acredito que isso é uma realidade dos nossos dias e que cada vez há mais católicos no mundo – laicos e religiosos – dispostos a aceitar que o homossexual é um ser tão normal como o heterossexual; e que, como este, deve ter direitos de cidadão, de poder formar uma família e gozar das mesmas prerrogativas sociais e jurídicas que os casais heterossexuais.
A chegada ao Vaticano do Papa Francisco começou com muito bons sintomas, pois os primeiros gestos, declarações e iniciativas do novo Pontífice pareciam augurar reformas profundas no seio da igreja que a integrariam à vida e à cultura do nosso tempo. Ainda não se concretizaram, mas não se pode descartar que aconteça. Todos nos lembramos da sua resposta quando foi perguntado sobre os gays: “Quem somos nós para julgá-los?” Era uma resposta que insinuava muitas coisas positivas que demoram para chegar. Não convém a ninguém -- tampouco aos que não somos crentes – que, por sua teimosa adesão a uma tradição intolerante e dogmática, uma das grandes igrejas do mundo se afaste da maioria da humanidade e se confine em margens retrógradas.
Isso está acontecendo no Peru, infelizmente, desde que sua hierarquia caiu nas mãos de um obscurantismo agressivo, como o que encarna o cardeal Cipriani e transpira o comunicado contra a União Civil da Conferência Episcopal. Digo infelizmente porque, embora seja agnóstico, sei muito bem que, para a maioria da coletividade a religião sempre é necessária, já que ela lhe fornece as convicções, crenças e valores básicos sobre o mundo e o além, sem os quais entra naquele estado de desconcerto e ansiedade que os antigos incas chamavam “a behetría”, essa desolação e confusão coletivas que, segundo o Inca Garcilaso, acometeu Tahuantinsuyo naquele período em que pareceu que os deuses se eclipsavam .
Eu tenho a esperança de que, contra o que dizem certas pesquisas, a lei da União Civil, pela qual acabam de se manifestar nas ruas de Lima tantos milhares de jovens e adultos, será aprovada e que o Peru terá avançado um pouco mais em direção a essa sociedade livre, diversa, culta – longe da barbárie – que, estou convencido, é o sonho alentado pela maioria dos peruanos.




sexta-feira, 18 de abril de 2014

Gabriel García Márquez / Lembranças tropicais

14.04.17_Perry Anderson_Lembranças tropicaisPor Perry Anderson.
Gabriel García Márquez  
Lembranças tropicais
Por Perry Anderson
Como formas de escrever sobre o passado, memórias e autobiografias são empreitadas diferentes, apesar de na prática não se sobreporem. No limite, um livro de memórias pode recriar um mundo ricamente povoado por pessoas, sem contudo falar muito sobre o próprio autor. Uma autobiografia, em compensação, pode assumir a forma de um retrato puro de si, no qual o mundo e os outros aparecem apenas como uma mise-en-scène para a aventura íntima do narrador. Ao recontar sua vida, romancistas já produziram atos de bravura em ambos os gêneros. Entre as obras modernas, To Keep the Ball Rolling [Para Manter a Bola Rolando], de Anthony Powell – quatro volumes agradáveis, embora lacônicos –, é uma obra-prima do primeiro gênero. O breve As Palavras, de Sartre, é talvez o maior exemplo do segundo. Viver para Contar, de Gabriel García Márquez, é classificado como livro de memórias por seus editores, mas há certa dúvida de que, no conjunto, se enquadre nessa categoria. Márquez é, obviamente, um lendário contador de histórias. Além disso, possui uma aguda inteligência autorreflexiva, como podemos observar em Cheiro de Goiaba, em que reproduz suas conversas biográficas com Plinio Apuleyo Mendoza.

Urariano Mota / O outono de Gabriel García Márquez

13.07.16_Urariano Mota_O outono de Gabo

O outono de Gabriel García Márquez


Por Urariano Mota

Faz um ano li nos jornais um atentado grave para todos que amam a criação e a literatura: o gênio essencial de nome Gabriel García Márquez estava perdendo a memória. De lá para cá, por caridade ou leviano movimento do noticiário, ninguém mais falou. É como se perdêssemos também a memória sobre a memória do genial mestre do romance. Razão por que retomo aqui este breve lapso.
Quando se espalhou como peste a notícia, o anúncio da demência veio de Plínio Apuleyo Mendoza, amigo da juventude de García Márquez, sobre quem Plínio publicou o bom livro Cheiro de Goiaba. Assim Plínio Apuleyo Mendoza anunciou a desgraça:
“No dia em que ele completou 85 anos (6 de março), liguei para dar parabéns, mas quem falou comigo foi Mercedes, sua esposa. Ela preferiu assim porque ele não se lembrava de mim…

17 coisas que você não sabia sobre Gabriel García Márquez

2014-04-17-Gabriel.png

17 coisas que você não sabia 
sobre Gabriel García Márquez

Nathália Bottino
17 de abril de 2014

Gabriel Garcia Marquez

O escritor colombiano, vencedor do Prêmio Nobel da Literatura, brother do Fidel Castro e autor de obras consagradas como Cem Anos de Solidão e O Amor nos Tempos do Cólera morreu hoje na Cidade do México. Gabo, como era carinhosamente conhecido, é considerado um dos mais importantes escritores do século 20. Ele também trabalhou como jornalista, apesar do descontentamento com (nós) colegas de profissão durante a época em que esteve internado. Mas não guardamos nenhuma mágoa. ;)
Como homenagem, selecionei 17 curiosidades sobre ele. Confira:
1. García Márquez se declarou fanático por sua conterrânea Shakira. Algumas de suas canções apareceram na adaptação cinematográfica de O Amor nos Tempos do Cólera.
2014-04-17-GabrieleShakira.png
2. A Metamorfose, de Franz Kafka, foi um dos primeiros livros lidos por Gabo. E foi graças à obra que ele descobriu sua veia literária.
3. García Márquez foi correspondente na Europa e em Nova York, onde foi perseguido pela CIA por causa de sua ligação com Fidel Castro.

quinta-feira, 17 de abril de 2014

Franz Kafka / Diante la Lei



Franz Kafka
DIANTE LA LEI

Diante da Lei está um guarda. Vem um homem do campo e pede para entrar na Lei. Mas o guarda diz-lhe que, por enquanto, não pode autorizar-lhe a entrada. O homem considera e pergunta depois se poderá entrar mais tarde.
─É possível” –diz o guarda─. Mas não agora!
O guarda afasta-se então da porta da Lei, aberta como sempre, e o homem curva-se para olhar lá dentro. Ao ver tal, o guarda ri-se e diz:
─Se tanto te atrai, experimenta entrar, apesar da minha proibição. Contudo, repara, sou forte. E ainda assim sou o último dos guardas. De sala para sala estão guardas cada vez mais fortes, de tal modo que não posso sequer suportar o olhar do terceiro depois de mim.
O homem do campo não esperava tantas dificuldades. A Lei havia de ser acessível a toda a gente e sempre, pensa ele. Mas, ao olhar o guarda envolvido no seu casaco forrado de peles, o nariz agudo, a barba à tártaro, longa, delgada e negra, prefere esperar até que lhe seja concedida licença para entrar. O guarda dá-lhe uma banqueta e manda-o sentar ao pé da porta, um pouco desviado.
Ali fica, dias e anos. Faz diversas diligências para entrar e com as suas súplicas acaba por cansar o guarda. Este faz-lhe, de vez em quando, pequenos interrogatórios, perguntando-lhe pela pátria e por muitas outras coisas, mas são perguntas lançadas com indiferenca, à semelhança dos grandes senhores, no fim, acaba sempre por dizer que não pode ainda deixá-lo entrar.O homem, que se provera bem para a viagem, emprega todos os meios custosos para subornar o guarda. Esse aceita tudo mas diz sempre:
─Aceito apenas para que te convenças que nada omitiste.
Durante anos seguidos, quase ininterruptamente, o homem observa o guarda. Esquece os outros e aquele afigura ser-lhe o único obstáculo à entrada na Lei. Nos primeiros anos diz mal da sua sorte, em alto e bom som e depois, ao envelhecer, limita-se a resmungar entre dentes. Torna-se infantil e como, ao fim de tanto examinar o guada durante anos lhe conhece até as pulgas das peles que ele veste, pede também às pulgas que o ajudem a demover o guarda. Por fim, enfraquece-lhe a vista e acaba por não saber se está escuro em seu redor ou se os olhos o enganam. Mas ainda apercebe, no meio da escuridão, um clarão que eternamente cintila por sobre a porta da Lei. Agora a morte está próxima. Antes de morrer, acumulam-se na sua cabeça as experiências de tantos anos, que vão todas culminar numa pergunta que ainda não fez ao guarda. Faz-lhe um pequeno sinal, pois não pode mover o seu corpo já arrefecido. O guarda da porta tem de se inclinar até muito baixo porque a diferença de alturas acentuou-se ainda mais em detrimento do homem do campo.
─Que queres tu saber ainda? ─pergunta o guarda─. És insaciável.
─Se todos aspiram a Lei ─disse o homem─. Como é que, durante todos esses anos, ninguém mais, senão eu, pediu para entrar?
O guarda da porta, apercebendo-se de que o homem estava no fim, grita-lhe ao ouvido quase inerte:
─Aqui ninguém mais, senão tu, podia entrar, porque só para ti era feita esta porta. Agora vou-me embora e fecho-a.



quarta-feira, 16 de abril de 2014

Villiers de L'Isle Adam / A tortura da esperança

El Monje
Sergio Menossi
Auguste Villiers de L'isle Adam
A tortura da esperança
Há muitos anos, ao cair da tarde, dirigiam-se a um cárcere subterrâneo o venerável Pedro Arbuez d'Espila, sexto prior dos Dominicanos de Segóvia, e terceiro Grande Inquisidor de Espanha, seguido por um fra redemptor e precedido por dois familiares do Santo Ofício, estes conduzindo lanternas. Rangeu o ferrolho de uma porta maciça, e penetraram num mefítico in-pace, onde a luz baça filtrada pelas frestas iluminou um edifício manchado de sangue, um braseiro e um jarro. Sobre um monte de palha, coberto de grilhões e com uma argola de ferro ao pescoço, está sentado um homem pálido, de idade incerta, coberto de andrajos.
Não é outro o prisioneiro senão o rabino Aser Abarbanel, judeu de Aragão, o qual, acusado de usura e desdém impiedoso pelos pobres, tem sido diariamente submetido a torturas, há mais de um ano. Todavia, "sua cegueira é tão densa quanto o seu orgulho", e ele recusa-se a abjurar sua fé.
Orgulhoso de uma ascendência que data de milhares de anos, orgulhoso de seus antepassados - porque todo judeu digno desse nome sente vaidade de o ser - descende ele talmùdicamente de Otoniel, e, consenqüentemente, de Ypsiboa, esposa do último juiz de Israel, circunstância esta que lhe tem sustentado a coragem diante de incessante tortura. Com lágrimas nos olhos, a pensar nesta resoluta alma que recusa a salvação, o venerável Pedro Arbuez d'Espila, ao aproxima-se do fremente rabino, diz-lhe ao que segue:
- Regozija-te, meu filho: estão terminando aqui em baixo as tuas desventuras. Se em presença de tamanha obstinação fui obrigado a permitir, com grande pesar, o uso de tanta severidade, tem seus limites a minha tarefa de correção fraternal. És a figueira, que passando tanto tempo sem frutificar, vem a mirrar, e só Deus lhe pode julgar a alma. Quem sabe se a infinita Misericórdia te iluminará no teu último instante! Esperemos que assim seja. Tem havido exemplos. Dorme, pois, em paz esta noite. Serás incluído amanhã no auto de fé: isto é, serás exposto ao quemadero, às chamas simbólicas do fogo eterno: elas ardem, como sabes, meu filho, apenas à distância; e a morte custa a vir duas horas (muitas vezes três), por causa das faixas úmidas com que protegemos a cabeça e o coração do condenado. Serão ao todo quarenta e três, contigo. Incluído em último lugar, terás tempo para invocar a Deus e oferecer-lhe este batismo de fogo que é o do Espírito Santo. Confia na Luz, e descansa.
Com estas palavras, depois de fazer sinal aos companheiros para que desencadeassem o prisioneiro, abraçou-o o prior, com ternura. Foi depois a vez do fra redemptor, o qual, em tom lamurioso, suplicou perdão ao judeu pelo que lhe fizera sofrer com o propósito de o redimir; e enfim beijaram-no em silêncio os dois familiares. Terminada a cerimônia, foi deixado o cativo, solitário e apalermado, imerso nas trevas.
Com os lábios ressecados e o rosto gasto pelo sofrimento, a princípio o rabino Aser Abarbanel olhou com os olhos vagos para a porta que se fechara. Fechada? Inconscientemente em seu espírito aquela palavra acordou uma fantasia, a fantasia de ter visto por alguns momentos, através da greta entre a porta e a parede, a luz das lanternas. Uma idéia mórbida de esperança, devido à fraqueza de seu cérebro, convulsionou-lhe todo o ser. Arrastou-se para perto da estranha aparência. Depois, com cuidado e vagar, enfiou o dedo pela fenda, e puxou a porta. Maravilhas! Por extraordinário acidente, o familiar que a fechara correra o ferrolho pouco antes de chegar a porta ao orifício de pedra, de modo que o ferrugento espigão não entrara no buraco, e a porta girou de novo nos gonzos.
0 rabino arriscou um olhar para fora. Com a ajuda de uma espécie de escuridão luminosa distinguiu primeiro um semicírculo de paredes, recortado de degraus em espiral; e a sua, frente, acima de cinco ou seis degraus de pedra, um portal escuro, aberto para imenso corredor, cujas primeiras escadas eram visíveis de baixo.
Esticando-se, trepou no patamar. Sim, era realmente um corredor, mas de comprimento sem fim. Sombria luz o iluminava: lâmpada suspensas do teto abobadado clareavam, a intervalos, a obscuridade reinante; sua extremidade perdia-se na sombra. Nem uma só porta parecia haver em toda a sua extensão! Apenas a um lado, à esquerda, seteiras fortemente gradeadas, abertas na parede, deixavam entrar uma claridade que devia ser a do crepúsculo, porque nas lajes do pavimento se estiravam résteas de luz avermelhada. E que silêncio terrível! Não obstante, no extremo do corredor deveria de haver uma porta de saída! A esperança vacilante do judeu era tenaz, por que era a última.
Sem hesitar, avançou, conservando-se junto à parede, e procurou confundir-se com a escuridão. Avançou lentamente, arrastou-se com a respiração contida, e reprimia um grito de dor, quando um ferimento mais recente lhe provocava dores por todo o corpo.
De súbito, ouviu aproximar-se o ruído de pés calçados com sandálias. Tremeu violentamente. 0 terror empolgou-o, escureceu-se-lhe a vista. Bem, estava tudo acabado não havia dúvida. Espremeu-se dentro de um nicho, quase morto de pavor, e esperou.
Era um frade que passava. Passou apressado, um instrumento de tortura, - um vulto medonho - e desapareceu. A agonia do rabino parecia ter-lhe interrompido a própria vida, e ali ficou ele, quase uma hora, incapaz de mover-se. Por temer o requinte da tortura, se o recapturassem, pensou em voltar para o cárcere. Mas a velha esperança sussurrou-lhe na alma o divino talvez, que nos conforta sempre, nos mais dolorosos transes. Acontecera um milagre. Disso já não duvidava. Inclinou-se pela probabilidade de fuga. Exausto de sofrimentos e fome, tremulo de dores, prosseguiu. A sepulcral galeria parecia alongar-se misteriosamente, enquanto ele, sempre caminhando, procurava nas trevas o lugar onde devia haver a passagem para a liberdade.
Oh! Oh! Ouviu novos passos, desta vez porém mais vagarosos e mais pesados. Apareceram as formas brancas e pretas de dois inquisidores, que emergiam da obscuridade ao fundo. Vinham conversando em voz baixa, e pareciam discutir assunto importante, porque gesticulavam veementemente.
Ao vê-los o rabino Aser Abarbanel fechou os olhos: batia-lhe tão desordenadamente o coração que ele quase se sentia sufocar; seus andrajos estavam úmidos do suor da agonia; conservou-se imóvel, calado à parede, a boca aberta, sob os raios luminosos do lampião orando ao Deus de David.
Bem em frente a ele, pararam sob a lanterna os dois inquisidores; sem dúvida em virtude do argumento, naquele instante no seu clímax. Um. deles, enquanto ouvia o companheiro, fitou os olhos no rabino. E ao peso daquele olhar, - cuja ausência de expressão: não pode notar a princípio - já sentia de novo as tenazes candentes a lacerar-lhe as carnes, e ele outra vez convertido em chaga viva; desfalecendo, oprimido, com as pálpebras vibrantes, arrepiou-se ao sentir no corpo o contato do burel esvoaçante do monge. Mas, - fato estranho, embora natural, o olhar do inquisidor era, evidentemente, o de pessoa profundamente absorta na resposta que daria, ainda mais alheado pelo que ouvia; seu olhar era fixo, e parecia olhar para o judeu sem o ver.
Com efeito, passados alguns minutos, os dois vultos escuros continuaram lentamente o seu caminho, sempre conversando em voz baixa, na direção do lugar de onde viera o prisioneiro; ele não fora visto!. No meio da horrível confusão dos pensamentos do rabino, brotou-lhe do espírito esta idéia: "Estarei morto, de modo que eles não me viram?" Horrível impressão assaltou-o na sua letargia: ao olhar para a parede junto à qual colara o rosto, imaginou ver dois olhos ferozes que o espreitavam! Voltou a cabeça num súbito frenesi de pavor, os cabelos revoltos a cair-lhe por todos os lados. Mas, não! Não. Esfregou a argamassa com a mão: era o reflexo dos olhos do inquisidor, ainda impressos nos seus, e deles projetados na parede.
Adiante! Ele precisava apressar-se para a meta que imaginava (absurdamente, não havia dúvida) ser a sua libertação, para a escuridão da qual não distava agora mais de trinta passos. Atirou-se de joelhos, com as mãos espalmadas arrastou-se penosamente, e daí a pouco entrava no trecho escuro daquele horrível corredor.
De súbito sentiu o pobre desgraçado, nas mãos que se arrastavam pelas lajes, uma lufada de ar frio, vinda de baixo de pequena porta, aonde iam ter as duas paredes.
Céus! se aquela porta abrisse para o exterior! Vibrou de esperança o mais ínfimo nervo daquele miserável fugitivo. Examinou-a de alto a baixo, embora fossem limitadíssimas as suas possibilidades de examinar-lhe o contorno na escuridão que o cercava. Passou a mão sobre ela: não tinha ferrolho, nem fechadura! Uma aldrava! Ergueu-se a aldrava, cedendo à pressão de seu polegar: a porta abriu-se silenciosamente à frente dele.
- Aleluia! - murmurou o rabino, num transporte de alegria, quando, de pé no patamar, contemplou a cena que tinha diante dos olhos.
Abrira-se a porta para um jardim, sob o qual se arqueava um céu estrelado; abrira-se para a primavera, para a liberdade, para a vida ! Revelava os campos circunvizinhos, que se alongavam na direção das serras, cujas sinuosas linhas azuladas se recortavam no horizonte. Para lá ficava a liberdade! Oh! Fugir! Caminharia toda a noite através dos limoeiros, cuja fragrância ele sentia. Estaria salvo quando alcançasse as montanhas! Inalou o ar delicioso; reavivou-o a brisa, expandiram-se-lhe os pulmões. Sentiu no coração dilatado o Veni foràs de Lázaro. E para mais uma vez agradecer ao Senhor, que lhe concedera aquela graça, estendeu os braços, elevando os olhos para o céu. Era o êxtase da alegria!
Imaginou então que a sombra de seus braços se aproximava dele... imaginou que aqueles braços o abraçavam... e que era ternamente apertado ao peito de alguém. Um vulto alto detivera-se agora bem atrás dele. Baixou o olhar... Ficou imóvel, a boca entreaberta, tonto, os olhos parados, babando-se de pavor.
Horror! Estava nos braços do próprio Grande Inquisidor, o venerável Pedro Arbulez d'Espila, que o contemplava com os olhos lacrimosos, como um amorável pastor que tivesse encontrado a ovelha tresmalhada.
0 padre de batina escura abraçava o malfadado judeu de encontro ao coração, com tão fervente transporte amoroso, que as pontas do hábito monacal quase lhe roçagavam o peito de dominicano. E enquanto Aser Abarbanel, de olhos esbugalhados, agoniava-se naquele abraço do asceta, com a compreensão vaga de que todas as fases daquela noite fatal tinham sido apenas uma tortura pré-estabelecida, a tortura da Esperança, o Grande Inquisidor, num tom de comovente reprovação, e com o olhar consternado, murmurava-lhe ao ouvido, o hálito seco e ardente, pelos constantes jejuns:

- Como, meu filho! Quando te concedemos a graça de aproximar-te da salvação... querias deixar-nos?